#24 – uma possível definição. Por um lado, em uma síntese que não se pretende um acerto completo,  mas que apenas propõe uma possibilidade de compreensão, pode-se dizer que se relacionar é também se permitir ser conhecido e reconhecido, tocado e sentido; é poder afetar e ser afetado numa parceria autorizada conscientemente e de maneira construtiva. Por outro lado, abuso (do termo latino ‘abūsus‘) indica um comportamento inadequado, que vai além do permitido, que é usado em excesso. Assim, numa relação que se pretende saudável, não existe a permissão de que uma parte seja considerada posse da outra, não se assegura os direitos de um indivíduo nas mãos de outro(s). O compartilhamento de si ou de suas habilidades é perfeitamente compreensível quando algo se relaciona. No entanto, se há exploração, rebaixamento hierarquizado, destituição existencial, dominação e, por tudo isso, violência, o relacionamento é, portanto, abusivo. O relacionamento é abusivo também quando você é considerada a parte que deve satisfações até de seus pensamentos; quando sua maneira natural passa a não agradar a outra parte, e não a agradando você deve mudar o seu modo de existir exclusivamente porque te exigem isso; é abusivo quando você sofre privação social, quando seus recursos financeiros estão limitados ao desejo e à concessão de outra pessoa, quando a sua mão de obra te desgasta mais do que supre suas necessidades e quando, apesar disso tudo, você assume a existência de uma culpa e admite que essa culpa só pode ser sua.

#25 – das fases e das possibilidadesTodo relacionamento abusivo começa com o ato de convencimento: é preciso convencer a vítima de que ela deve participar da dada relação; é preciso convencer o sujeito participante de que aquele relacionamento é importante e vital a sobrevivência. Seja entre pessoas num romance, seja na sociedade e nas religiões, um relacionamento abusivo inicia-se te dizendo que dentro dele sua vida será mais promissora do que fora de suas cercas. Quando se convence os negros de que eles serão mais felizes caso aceitem docilmente seu lugar dentro de uma sociedade racista; quando convencem pessoas LGBTQIA+ de que seu relacionamento com a sociedade será muito mais sustentável caso permaneçam em silêncio dentro de seus armários; quando dito às mulheres que elas devem ser emotivas e que a cozinha ainda foi feita para seu deleite, bem como a maternidade para sua legitimação enquanto mulher completa; quando dizem nas religiões que há um ser soberano ao qual devemos entregar nossos caminhos e seguir suas diretrizes egoístas, ou quando nos incentivam a acreditar que o sofrimento é sim uma maneira de ser mais forte; nessas circunstâncias todas estão também nos dizendo que um relacionamento abusivo nos espera de boca aberta – porém jamais utilizariam esses termos. O passo seguinte é tornar o convencimento um evento tão frequente que seus tentáculos possam nos envolver e nos amarrar de tal modo que acreditemos que fomos nós quem escolhemos estar ali. Em uma sociedade embranquecida (brancos em todos os lugares, nos cargos públicos, em posições de poder, em contraste com negros taxados de bandidos e ocupando sempre a posição de prestadores de serviços gerais), busca-se pelo reforço de que nós, negros e negras, estamos no lugar que “nascemos para estar”. Um sistema heteronormativo e patriarcal tenta todos amarrar as pessoas às suas imposições todos os dias, e faz isso freneticamente. Depois que se inicia o movimento de nos dissolver nos seus projetos de dominação, somos, então, destituídos da possibilidade de pensar a respeito dessas situações. Um tratamento psicológico atua de modo a retirar de nós a sensibilidade do que nós causamos e do que foi causado em nós: é a fragilização psicológica, a fragmentação sentimental e emocional. Isso acontece para que neguemos a atuação de um sistema violento e de dominação sobre nossas vidas, para que rejeitemos a ideia de que vivemos uma relação abusiva, e assim sigamos nos prendendo e criando raízes que tornam cada vez mais difícil a separação. Para assegurar o laço bem amarrado e o enraizamento bem profundo, a retirada dos recursos da parte abusada será uma medida essencial: ao empobrecer o objeto de abuso, este raramente conseguirá se livrar da dependência; e empobrece-se os sentimentos, os desejos, a conta bancária, as oportunidades. Para fortalecer essa ação de convencimento, usa-se do artefato da negação compulsiva: tudo que você disser será negado! Seus sentimentos, suas percepções, seus desejos e inclusive a sua tentativa de compreensão de sua própria vida serão negados um a um. É preciso um isolamento para que se acredite que o único mundo possível é aquele onde você está: no relacionamento abusivo. Assim, convencido de que está no lugar que deveria estar, que suas capacidades não lhe permitiriam coisa diferente e dizendo a si mesmo que não consegue perceber onde está o erro já que a vida é aquilo mesmo, mas que também se encontra pobre o bastante para empreender qualquer tentativa de saída, o relacionamento abusivo faz do objeto abusado uma presa contínua. Presa essa que pode atingir um estado de esgotamento e de crises profundos, levando a perda completa de si e da noção de existência. Relacionamento abusivo é muito mais complexo do que se pretende o nome; ele adoece, ele dilacera, ele mata.

#26 – de quem permanece. Infelizmente ainda é muito comum pessoas externas apontarem as características de quem potencialmente vive uma relação abusiva. Dizeres como “está nessa vida porque quer” ou “vive assim porque gosta!” são falas desavisadas, além de serem totalmente violentas. Ninguém que sabe de um relacionamento abusivo almeja permanecer nele – do contrário, porque seria abusivo em sua essência? Quando se vive um relacionamento abusivo, quando se experimenta esse fenômeno agressivo, você já está em um envolvimento sistemático com as características dominadoras que configuram esse tipo de relação, você já não se percebe nos tentáculos, está com raízes aprofundadas. Quem permanece nele, segue agonizando, e é preciso que algo ou alguém de fora lhe diga que existem outras possibilidades. Mas como isso é possível se quem está de fora não sabe fazer outra coisa além de apontar o dedo e dizer que “é uma questão de escolha”? Devemos mostrar os caminhos que fazem de um relacionamento um ninho de abuso; podemos sinalizar aos poucos e permitir que a pessoa em abuso possa se perceber ali dentro, do contrário, nada a tirará de onde está. [Talvez, apenas a morte.]

#BÔNUS. E para quem pensa que não vive uma relação abusiva, a má notícia é que um Relacionamento Abusivo não acontece somente em uma relação romântica. Se você existe numa sociedade racista, sexista, heteronormativa, capitalista, religiosa (sobretudo cristã) e fundada e sustentada sobre profundas desigualdades sociais, saiba que você invariavelmente vive uma relação abusiva, ainda que não reconheça ou que não aceite esse nome. Mas isso eu já disse antes, então o bônus é a própria repetição. Resta você se dar conta de que lado você está nessa trama: se você abusa ou se é você a parte abusada.

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida na internet.