“Eu creio em Deus porque não poderia ser diferente, filha! Com tantos milagres na minha vida é impossível Deus não existir”, respondeu seu Avelino à Helena, que lhe perguntou se e por que ele acreditava na existência de Deus.
[Pelos olhos de seu Avelino]
Seu Avelino [um homem aposentado, de 74 anos de idade] dizia orgulhosamente aquela frase acima; e, na ocasião, disse tais palavras num domingo qualquer, como nesses em que se comemora o suposto nascimento de um suposto sujeito que – também supostamente – multiplicava a esperança da gente desesperada.
Como numa prosa convicta de quem não duvida do que diz, seu Avelino começou a elencar fervorosamente os episódios em que, em suas palavras, sentiu “a mão de Deus livrá-lo de situações adversas”:
_“Lembro-me bem, foi no meu primeiro dia de emprego na mesma empresa em que me aposentei: eu dormia com muita tranquilidade, quando de repente só escuto freadas na rua onde eu morava, e o som alto da sirene da polícia acordaria qualquer pessoa; com certeza alguém aprontou, porque logo depois dos gritos ouvi dois disparos. Quando olhei no relógio, estava em cima da hora de eu ir trabalhar; levantei num pulo, me troquei e saí correndo, o dia nem começou a clarear. Cheguei na firma no horário exato! Já penso?, podia ser que se Deus não tivesse enviado a polícia naquela hora, eu nem teria trabalhado onde trabalhei, e sabe-se lá se estaria aposentado hoje! Deus sabe o que faz!”A
Helena ouvia e se servia de mais café, enquanto o velho prosseguia…
_”Outra vez foi um susto também! A energia piscou umas duas vezes aqui em casa, Lembra Vera? – falava virando-se para sua esposa. Na terceira piscada, em questão de segundos, os aparelhos desligaram tudo! Só senti o cheiro de queimado… perdemos quase todos os eletrodomésticos, deu um curto-circuito geral, os vizinhos tudo saíram no prejuízo. A única coisa que ficou acesa na casa e talvez na vizinhança foi uma luminária que ganhei do Pastor Arnaldo no Culto da Bênção, e que ficava ligada todo dia em cima da Bíblia. E advinha o que estava escrito na página que a luminária iluminava? ‘Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não será atingido’; é Deus nos dando um recado ou não?B
Helena olhava no profundo dos olhos entusiasmados de seu pai, e alternava os olhares para a sua mãe, na cadeira que desenha um triângulo de conversas à mesa. Vera respondia à filha com um meio sorriso de canto direito e com um olhar cujos olhos baixavam-se nas laterais, acompanhado pelo movimento contraído e levantado onde as sobrancelhas formavam um telhado, como quem estava emocionalmente admirada com a capacidade de narrativa de seu Avelino. Ele prosseguia na fala:
_”E da vez que quase fui atropelado quando ia te buscar na escola? Sorte a minha que Deus colocou a sua mão potente e desviou o ônibus que ima me esmagar, mas que bateu no poste. Juro por Deus que tá no céu, eu vi uma mão santa empurrando o ônibus. Que Deus tenha ajudado o motorista! Amém!”C
…
_”Como esquecer da vez que a mãe de vocês foi ter o Pedro no hospital e quase não conseguiu aquela sala com vitrine chique para a gente poder olhar os médicos trabalharem? Eu pedi tanto a Deus que desse certo, e deu! Naquele dia, ao caminho do hospital, quase que um carro preto bateu em nós, parecia até o diabo fugindo da cruz!”D
_ “É verdade, Lino!” – respondeu Vera, emocionada.
_”Essa casa mesmo onde a gente mora hoje! Lembro que Deus prometeu que não nos deixaria sem um lar – disse seu Avelino. E quando chegamos aqui era tudo mato! Mas Deus colocou anjos no nosso caminho que nos mostraram esse terreno que estava com outros lotes à venda. O vendedor disse que Deus ajudou o proprietário dos lotes na justiça e tirou um pessoal selvagem e drogado que queria invadir o espaço. Ainda pagamos um ótimo preço! Deus move montanhas para ajudar os filhos dele! Minha filha, Deus existe ou não?”E
…
Seu Avelino prosseguiu dizendo sobre os milagres que aconteceram em sua vida. Contou da cura do câncer de pulmão (“Deus me disse que colocaria um câncer no meu pulmão se eu não parasse de fumar; mas que me libertaria se eu me arrependesse e me consagrasse a Jesus, e ele cumpriu tudo! Demorei para parar, Deus me deu o câncer; mas quando me arrependi e parei Ele me libertou todinho!”)F. Falou também da bêncão que era ver a filha chegar todas as noites em segurança em casa, que Deus a guardava no caminho da faculdade (Helena voltava de carro todos os dias, e a garagem tinha portão de abertura automática)G. A prosa continuou com muitos outros exemplos…
Helena ouvia tudo com um mix de dúvidas e paz; ao mesmo tempo que ela ficava muito contente em ver o pai se lembrar do passado com tanto vigor (já que há 6 meses ele foi diagnosticado como tendo o Mal de Alzheimer e recentemente começou a esquecer o nome de alguns objetos) ela também não conseguia ouvi-lo falar aquilo tudo de Deus sem se sentir um tanto incomodada, já que ela não acreditava que Deus havia feito coisa alguma. Nesse dia, ela foi visitar a família com o desejo contar ao pai e à mãe (tal como o pai, fortemente religiosa) que ela não acreditava mais em Deus. Mas ao saber da situação dele e ao ver sua felicidade em falar de Deus e do passado como se fosse uma anestesia para seu sofrimento, pensou bem, apertou a enrugada mão do velho, beijou-o na testa e disse: “pelo visto você você é uma pessoa muito importante para o Deus do céu, né, pai? E que bom que está conosco!“. “Sim, filha! Deus é bom!” – foram as últimas palavras de antes de ir cochilar na cadeira, onde faleceu.
[A história vista de longe]
Distante da bolha de crenças que envolvia aquele seu Avelino e muitos outros Avelinos e muitas outras Veras mundo afora, estava a realidade material impondo sobre os seres os efeitos do acaso e das materialidades possíveis.
(A) Naquela manhã, os freios da polícia eram não um presente de um Deus, mas uma violenta abordagem policial. Jonas caminhava de capuz pela manhã fria, retornando do trabalho com um pão baguete em sua sacola preta. Como acontece frequentemente com pessoas negras que caminham numa rua pouco iluminada – pois ainda eram cinco da manhã – ele foi encurralado pela polícia, que desceu do carro aos gritos e xingamentos. No susto, e num movimento automático de quem está sempre se rendendo, Jonas levanta as mãos e, junto, o baguete; ele foi “confundido” como se estivesse armado. A polícia, como sempre destreinada e preparada para matar pessoas pretas, fez o que melhor sabe fazer: lançou dois disparos no trabalhador preto que só queria descansar depois de 12 horas de plantão no Pronto Socorro. Os mesmos gritos e tiros que acordaram seu Avelino também despertaram Joaquim, marido de Jonas, que dormia numa casa a duas quadras dali; e que levou 12h para saber que o morto era o seu marido, com quem se casou havia exatos 12 meses naquele dia. Auxilio divino para uns, morte para outros.
(B) Júlia brincava de soltar pipa na rua; pouco lhe agradava as bonecas; ela dizia que não era menina, e que queria fazer o que os meninos da rua faziam – “quero ser quem eu sou!”; assim era o que ele havia aprendido sobre ser menino até então. Um dia de sábado, quando sua pipa com estampas de dragão enroscou no poste de fiação elétrica, ele não pensou duas vezes, subiu correndo na laje da mãe (que era coincidentemente bem próxima à fiação onde estava presa a pipa) e pegou uma barra de ferro – aqueles de construir vigas e colunas – e foi direto ao resgate do seu brinquedo. Sua mãe, percebendo a cena ainda tentou correr. “Juliaaaaaaa!!!!” … Júlia mal tocou a fiação e a energia da rua piscou três vezes, enquanto ele permanecia grudada à barra, que por sua vez grudava-se aos cabos de alta tensão. Foram dias de profunda amargura na casa de Inês, que já havia perdido seu filho mais novo havia menos de um ano para a malária. Júlia era sua maior riqueza. Enquanto isso, na casa de seu Avelino, que agradecia a Deus pelo sinal de amor, aquela luminária acesa não desligou porque era um modelo que tinha uma bateria de emergência, que permaneceu ligada tempo suficiente até consertarem a rede elétrica. O milagre seletivo não poupou uma criança, mas manteve acesa uma luminária que foi feita para não desligar.
(C) Edílio não acordou bem. Ao chegar na garagem de ônibus – que na época ficava ao lado da escola de Helena – disse ao coordenador que não estava se sentindo normal, que precisava ir ao médico conversar com o cardiologista, pois aquelas dores voltaram durante a noite – “É como uma pontadas o peito, chefe!”. Geraldo lhe disse “Pelo amor de Deus, Edi! Ou você trabalha hoje, ou contratamos outro em seu lugar! O Evandro faltou pela segunda vez; quer que eu seja demitido por não colocar ônibus na rua?” Edílio não se viu em condições de escolher, precisava pagar o seu apartamento, faltavam apenas duas parcelas para que ele se sentisse realmente o dono do espaço pela primeira vez na vida [é como num sistema que nos torna suas presas à medida que nos sentimos vitoriosos/as]. Sem acordos, ele entrou no ônibus e partiu; porém, na mais mais leve olhada para o lado, foi surpreendido por um homem que atravessava a rua fora da faixa de pedestres – era seu Avelino indo buscar a filha na escola. Em segundos, o susto que Edílio levou disparou seu coração que já não passava muito bem. Ele tem uma parada cardíaca em plena rua. Seu corpo tombou para a esquerda, levando o volante para a direta, fazendo com que o ônibus atingisse em cheio um poste em frente ao bar do Batata. Edílio foi socorrido às pressas, quase não resistiu: além do coração que não estava bem, teve também o traumatismo craniano provocado pelo choque com o vidro, e uma fratura no braço direito; ficou 27 dias hospitalizado.
(D) Marta só queria ter sua filhas gêmeas; sua bolsa rompeu e ela se viu em desespero. Anderson saiu às pressas em seu Fusca preto, sem encontrar um hospital por perto. Quando depois de um tempo encontrou a Santa Casa de Misericórdia, pararam; mas o trabalho de parto era tão urgente que as gêmeas, Mayara e Laísa, nasceram no corredor lotado daquele hospital público. Marta pediu tanto a Deus que suas filhas nascessem com dignidade! Mas parece que ela não foi ouvida. Um tem vitrine preparada por milagres; outros são a própria vitrine do descaso e da calamidade.
(E) Após a prefeitura de Jacarezinho vender um enorme espaço de terra a uma empreiteira no centro da cidade, centenas de famílias que viviam ali havia pelo menos 12 anos se viram obrigadas (para não dizer violentamente forçadas) a saírem em busca de um lugar para morar. A ação da prefeitura foi ilegal, expulsou os moradores sem oferecer o mínimo de abrigo possível e necessário. Aquelas pessoas saíram desoladas e desesperadas, levando consigo o máximo dos poucos pertences que possuíam. Um grupo de 23 pessoas alojou-se num terreno que estava abandonado fazia 17 anos, localizado a algumas centenas de metros do centro da cidade. Passados menos de seis meses que estavam ali em seus barracos de madeira cobertos com lona, Eric, funcionário de Milton Alves (dono do terreno ocupado), tratou de avisar o patrão. Este acionou a Prefeitura local e depois de pagar uma boa propina ao secretário da guarda civil, exigiu que aquela gente fosse retirada dali o quanto antes. Novamente, o terror de quem não tinha onde morar invadiu suas mentes, sabe-se lá onde foram parar toda aquelas pessoas, com crianças de colo e algumas mulheres grávidas. Milton alves resolveu prontamente vender aqueles lotes, ainda que mais barato, só para não ter problemas outra vez. Nisso, enquanto seu Avelino passeava no calçadão da cidade, Eric e seu assistente o abordaram na rua e lhe ofereceram um dos terrenos; Avelino, desconfiado, foi ao culto buscar uma resposta de Deus. Naquela noite, pregador leu Gênesis, capítulo 12, verso 08. E exortou dizendo que Deus moveria uma montanha para seus filhos. Foi o suficiente para seu Avelino comprar a casa que até hoje não tem uma escritura oficial (mas que ele acha que sim). Enquanto isso, segundo apontamentos da ONU, cerca de 33 milhões de brasileiros/as não têm onde morar. Nenhuma montanha foi movida em favor desses/as.
(F) Marias, Paulas, Julianas, Edineias, Duracis. Essas e tantas outras jovens desapareceram ou foram mortas enquanto voltavam à noite da faculdade. Mas só à Helena coube um “Graças a Deus ela voltou bem!”. Esse privilégio de ter segurança não deveria ser chamado de “proteção Divina”, quando tantas outras mulheres são violentadas diariamente, pelo único fato de serem mulheres, sem quem nada nem ninguém as proteja. Segundo a Folha de São Paulo, em 10 de setembro de 2019 o “Brasil registra mais de 180 estupros por dia; número é o maior desde 2009“.
(G) Milhões de pessoas morrem anualmente pelo consumo de cigarro. Segundo a Agência Brasil, “o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, lembrou em 31 de maio de 2019, Dia Mundial Sem Tabaco, que o fumo mata pelo menos 8 milhões de pessoas por ano em todo o mundo. Além disso, milhões de pessoas vivem com câncer de pulmão, tuberculose, asma ou doença pulmonar crônica causada pelo tabaco”. Além disso, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e o Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas, sediados em Washington (EUA), nas Américas o tabaco mata uma pessoa a cada 34 segundos. Avelino sobreviveu pois só ele teve fé? Ou só ele merecia a vida?
[“Moral” da história]
Uma visão centrada única e exclusivamente na vivência pessoal torna-se uma bolha capaz de englobar crenças que se fortalecem a cada evento não explicado. A crença em Deus depende dessa individualização despreocupada dos “milagres” históricos e cotidianos. E é importante que a explicação não seja solicitada: explicações são agulhas que podem furam bolhas. Supor um Deus universal não faz muito sentido quando percebemos que os acontecimentos diários ocorrem em cadeia, que um episódio pode desencadear outros e mais outros. A maneira como experimentamos cada acontecimento (diga-se, uma maneira restrita e pessoalizada) permite a nossa alegorização e fantasia da cena vivida, cabendo inclusive nomear de milagre algo que tem explicações bem simples. Para outras pessoas, o nome disso é destino; mas é um destino que precisa também ser restritivo, não permite muitas análises, não se sustenta se os meandros de cada episódio forem conhecidos e trazidos à superfície visível. Talvez fosse mais interessante chamar de consequências em vez de destino, mas fazer isso tornaria a visão um tanto quanto fria demais para que tais pessoas encontrassem um motivo pelo qual viver. É sempre mais reconfortante dizer que “Deus quis assim”, ou, ainda, fechar os acontecimentos numa caixinha e amarrá-la com a máxima preguiçosa de que “é obra do destino”.
Logo, a crença em Deus precisa ser egoísta para existir; precisa ser idiossincrática, ou seja, deve ser característica de cada indivíduo que crê. Contudo, ao mesmo tempo ela precisa reunir pessoas que acreditem que são semelhantes, cujas vivências exclusivas se comuniquem de tal modo que o Divino se mostre presente na vida de cada uma, e que essas vidas se concatenem num movimento que agrupa semelhantes em egoísmos. É um verdadeiro paradoxo: para que Deus seja universal ele precisa ser exclusivo em cada mente. E isso cria bolhas e mais bolhas que, ao não notarem suas bordas transparentes unem-se num aglomerado maior de bolhas. E cada bolha existe porque só conhece uma versão da história que viveram. “Deus permite isso!”
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.