“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” – disse Clarice.
e se o tal defeito for apenas querer um afeto mais sincero, assim desse jeito?
ainda assim é de.feito? De que é feito?
não sei, mas de fato, cortar isso pode sinificar uma ruptura tal que suas consequências chegam a ser inimagináveis, de tão fatal.
mas que queria cortar, queria; e não me leve a mal.
a intensidade é a marca da armadilha;
ou no mínimo é a sinalização de um possível paradoxo:
de um lado, viver a intensidade dos afetos é viver a vida com liberdade,
de outro, essa intensidade, nem sempre, mas nem raramente, é desfeita quando o estepe não é mais importante de verdade.
que fazer quando o desejo de intensidade se depara com a mera prática de utilidade?
que fazer com todo um sentimentalismo quando do outro lado só se busca utilitarismo?
quem usa por usar, sabe que o faz por fazer?
quem diz de fato do leu lado querer estar,
sabe mesmo o significo de algo quando precisar comunicar?
é… nem sempre quem faz coisas ruins são pessoas más;
isso dificulta sobre como a situação interpretar;
nem sempre quem no começo é um afeto de fogo intenso,
sabe que seu peito há um espaço gelado imenso;
mas como posso eu poder saber se deveria viver aquele ser?
como vou descobrir se ali, naquele jogo de palavras de sedução, mora apenas uma ilusão?
quem disse que sei entender o que é um momento ou uma vontade de juntes crescer?
me parece que quanto mais o sujeito se arrisca a descobrir,
mais passa a se desiludir;
mas se viver é isso,
do que irei, então, fugir?
me intriga que a depender da forma em que cresce afeto de uma pessoa,
ela também passa a funcionar de uma certa meneira, e se assim se percebe ou não, não tenho certeza, nem sempre a pessoa conhece sua própria fronteira;
antes, vai tentando adequar ao seu formato com pelejo os demais modos de viver o desejo;
mas em geral, essa gente que adepta ao “deixa a vida me levar” pode até contigo se preocupar,
mas não leva tão a sério os efeitos do amar;
vão deixando se levar de tal forma que acontece assim:
encontram alguém que naquele momento é interessante,
sobretudo se esse alguém oferece algum tipo de desafio estimulante;
a pessoa branca quer a pessoa negra para se politizar na racialização, antirrascista de paixão;
a pessoa amarela, para dizer que não se relaciona com gente branca fetichista, pensa que ali, com a pessoa preta, será instantaneamente antirracista;
a cis quer a trans para provar sua inclusão, e fazem sempre algum cenão com cis-humilhação;
mas esses desafios politizantes, principalmente se forem de fachada, cansam demais;
deve ser profundamente doloroso ter ali ao seu lado (se não abaixo) o objeto de fetiche da desconstrução ao mesmo tempo que esse objeto lança na sua face os desvios éticos de sua repetida ação;
deve ser um pesadelo ter do seu lado alguém que te diga justamente o contrário daquilo que você buscava quando escolheu o produto no mercado das relações políticas;
é como um espelho falante, que toda vez que nele você se olha ele vira um autofalante;
vozes que te relembram do racismo ignorante, da transfobia hostilizante, mas que você sempre finge estarem tão de ti distante.
espelho espelho meu, existe alguém mais desconstruíde do que eu?
“fetiche não é desonstrução, é usurpação” – ele diz com voz suave.
“que ser antirracista de verdade, ou antitransfobia, quem sabe? então não proteja a qualquer custo os seus privilégios, não seja pela metade!” – repetiu o espelho com tenacidade.
mas há também aquelas pessoas que, independentemente do grupo ao qual pertençam, olharão para o desafio poliamoroso, e na pessoa alvo sentira o gosto do utilitarismo saboroso:
como deve ser poder se envolver com alguém para com o qual não preciso ter um [des]comprometimento assumido?
como deve ser me envolver com alguém que, “obviamente”, não se apega a ninguém, e que logo não vai esperar de mim algo fixo?
como seria usar um indivíduo de estepe enquanto ainda não encontrei o pneu que realmente me serve? Eita que a dinâmica até se inverte!
e se eu tapar um espaço vazio com esse indivíduo desapegado enquanto procuro pelo meu perfil desejado?
é como se, mesmo com as melhores das intenções,
é como se, ainda que existisse o melhor dos tratos,
as pessoas ainda assim busquem quem seja um mero objeto tapa-buraco.
acreditam no amor, com fervor;
acreditam na alegria, mesmo que por fantasia;
idealizam a felicidade, mas nem é essa da sua realiadde;
acreditam numa relação potente que pode haver, mas não exatamente com você.
é como se implicitamente dissessem:
te amo, mas não da sua maneira;
te quero, mas não nessa fronteira;
para perto eu te trago, mas só para sentir um breve afago.
São pessoas sempre em busca de alguém que ocupe um tal espaço,
que represente um pré-enchimento do vazio;
caçando com quem gozar;
gozando com que na ilusão acreditar;
fazendo planos,
criando narrativas,
projetando um futuro animado;
dizendo quero estar do seu lado;
mas não do jeito que você entendeu!
pois você entendeu errado!
no fundo, com você, uma pessoa assim só estava tapando buraco.
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
[ . . . ]
Use o espaço dos comentários para compartilhar também a sua opinião por aqui! Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Conheça o meu canal no YouTube e o sigam-me no Instagram. #VocêJáParouParaPensar


seus textos sempre tocam em lugares sensíveis com muito carinho.
te agradeço pela coragem de dividir. seguimos escrevendo pra sobreviver a desgraça coletiva que a gente encara todo dia.
CurtirCurtir
Marília Mendonça já cantava que amante que aspirava ser titular, abria vaga para chegar amante! E tem muitos gays que idealizam o homem bissexual como um “promissor marido”; quando a gente recebe ligação de um homem, carinhoso e cortes, é para uma (deliciosa) relação sexual! Sabado passado, foi um desses dias, com sensação de levitar ao ser penetrado, mas sei que tais momentos serão de relações fluidas!!!
CurtirCurtir