Hoje é 11 de julho de 2025. Dia em que socialmente completo 39 anos de nascimento. Ora, que tempo é esse, não? Que tempo é esse em que precisei desistir de mim mesma para poder ser quem sou, que precisei desfazer coisas e ideias mais “concretas” sobre mim para estar onde estou e desafirmar um vale de afirmações que nunca pedi pra ter… isso pra quê? Digamos que para continuar o tal vir a ser existencial.
A vida, ou melhor dizendo, o viver, tem uma das coisas que mais admiro e que, ao mesmo tempo, mais eu temo profundamente: a sua imprevisibilidade inegociável. Por mais que eu, com as minhas pragmáticas ideias e obsessões, tente organizar o caos da vida, nesse jogo entrópico de fazer um equilíbrio impossível, de quase nada me adianta. No virar dos ciclos estou sempre em um lugar que raramente foi o que pensei antes.
Se hoje sou isso que me percebo, assim sou porque tudo que um dia planejei meticulosamente não aconteceu. Tudo que minha mente indescansável um dia quis fazer, com seus planos e projetos imaginados como os mais certeiros ideais ruíram, se desfizeram, se transformaram e/ou se transmutaram numa coisa outra que nem toda minha imaginação seria capaz de prever. Nem todo o meu pragmatismo e nem todos os meus medos foram suficientes para me proteger das quedas, das quebras e das frustrações que sequer eu imaginei que viriam uma a uma.
Os medos; as recusas de mim mesma; as resistências de encaixes a uma norma que sequer eu solicitei; a profundidade do desejo de ficar para agradar algozes; todos os “sims” que eu disse para os outres e todos os “nãos” que eu disse a mim mesma… nada disso me protegeu de me quebrar em pedaços cujos cacos jamais encontrarei, e que até hoje marcam minha pele e minha subjetividade, esta também quebrada.
Resistir em ficar inerte ou em permanecer adequável não me protegeu de não ser vista e atacada, e suspeito de que fazer isso também não te protegerá. O nosso movimento é a nossa vida, e não deveríamos nos movimentar somente em direção ao que dizem que supostamente precisamos fazer… viver uma vida destinada é viver o que sonharam ou definiram sobre nós; mas nada nesse mundo vale mais que o sabor do preço que pagamos por ser quem somos, nada se equivale a afeto de poder sonhar fora do sono uma vida que inclua nossos desejos em seus incertos roteiros continuamente descontinuados e sem um ponto de chegada.
Hoje sou porque já deixei de ser várias vezes;
como disse o meu filho, é preciso matar o amor, e eu também “matei o amor antes que ele me matasse”;
matei aquele amor que exigia que eu secasse o oceano das minhas pulsões e das minhas vontades viscerais como em um gesto de sacrifício para pertencer ao rebanho que inevitavelmente se destinava ao matadouro;
matei a mim mesma nessa mesma cadeira em que estou sentada onde me posiciono, incomodada, para digitar essas palavras;
matei os sonhos que cravaram minhas mãos na cruz de um tal cristo;
matei o desejo de uma via só, que só via uma cor, um corpo, um ato;
executei à guilhotina as várias cabeças de um Eu que não me representa mais;
matei pela via da consciência nomeada a necessidade mortífera de estar neurotípica — uma tortura que nos flagela a cada dia;
precisei, sim, me matar para viver o que não faço ideia do que pode ser, mas que sei confiantemente como jamais quero que se repita;
prefiro a incerteza de um caminho desconhecido do que as dores certeiras de ter de aceitar as conhecidas exigências cistemáticas de uma tortura familiar a todo corpo dissidente.
2019 foi o primeiro ano da grande depressão.
Na verdade, em 2014, no acreditado auge da vida de uma pessoa pobre que teve sua bolsa de estudos para Europa aprovada, no ano em que eu fazia parte do meu mestrado no Centro de Excelência Marinha da Europa, por razões diversas eu já sentia silenciosamente que não queria viver. É um sentir que não se explica facilmente… mas que hoje, sim, entendo muito melhor…
Ali, em 2019, em outro suposto auge da minha vida, quando fui aprovada na Universidade de São Paulo, em quarto lugar na minha modalidade de ingresso, no segundo curso mais concorrido da instituição… ali, naquele ano que representava o desejo que quiçá desejei na infância, que era estudar, e estudar muito… ali, no auge da minha profunda tristeza que ninguém notava, em 2019 eu escrevi:
“Eu deveria estar contente com tantas coisas que tive ao longo desse replicar de bases nitrogenadas?
Eu deveria estar bastante satisfeito pelo simples fato de não me faltarem satisfações,
de não faltarem motivos para dizer que “sou um cidadão exemplar“?
Talvez devesse; talvez não.
Não importa! Embora a casca seja deveras útil, é o que está dentro do ovo que contém a verdade,
é aquilo que só se percebe depois que essa se rompe e dali sai um peixe, uma cobra ou um pavão — tudo, menos um ser humano.
Pintaram o ovo e disseram que isso bastava para transformar o conteúdo, mas eu já disse,
embora a casca seja deveras útil, é o que está dentro do ovo que contém a ideia da verdade,
é aquilo que só se percebe depois que essa se rompe; e rompeu.
Eis que nasce esse monstro dócil que te devora em ausência, frio. Indiferente?
[…]
Quanto mais você se perde, mais se precisa de guias para achar o caminho primeiro;
quanto menos se conhece, mais se precisa de um nome que te faça ser o que se deseja, mas não se quer,
profissionais fingem que são equilibrados e que conhecem o sujeito dividido,
santa mentira dos desentendidos que nem a si conseguem tolerar por um minuto em frente ao espelho,
é tanta gente fingindo ser, que às vezes não ser seria mais saudável;”
Eu não queria estar mais ali.
Assim como não quis estar em 2022, quando eu decidi, friamente, e com muita consciência e objetividade que também não queria mais estar — não daquele modo. Quando eu afirmei que “A vida é um pensamento solto”, na verdade desafirmava sobre mim todas as escolhas que fiz até então. Eu realmente fiz a escolha responsável por me tornar essa travesti que hoje você conhece um pouco.
Daquela morte nasceu essa monstra, essa aberração, essa confusa criatura que, por ser amaldiçoada a nunca mais parar de pensar, possui, então, uma mente turbulenta e incontrolável, mas que floresce suas vontades como que num campo de girassóis: floresce sem estar imóvel. Hoje sou o resultado das minhas dissidências, das minhas desistências sobre o mundo e sobre mim mesma. Quem ao menos uma vez já desistiu de si jamais se curvará diante da ordem de quem quer que seja que te force a existir. Não recobrei a consciência para aceitar menos que a plenitude que senti naqueles minutos gloriosos de morte.
Hoje eu me vejo em mim mesma!
Ando pelas ruas, nos vagões de trens e metrôs, nos corredores das instituições;
por todos esses e outros lugares que caminho me dizem — somente com seus olhares e cochichos — que sou estranha; seus olhares de abjeção me desenham como um objeto de nojo, de desordem e de abominação.
Mas insisto em seguir sendo eu mesma, monstruosamente eu!
Semana passada, quando eu estava indo ao Rio de Janeiro gravar para um documentário sobre afetividades negras, desde o primeiro momento que pisei na rua eu senti o que sinto todos os dias: o olhar das pessoas pesar sobre mim como uma carga exaustiva que não pedi para carregar.
Algumas pessoas normativas dirão que é uma síndrome de perseguição; e certamente serão as mesmas pessoas que perseguem corpos com suas ideias aniquiladoras da diferença.
Uma pessoa muito especial pra mim me encontrou na entrada do aeroporto de Congonhas para me dar um abraço; a abracei como quem queria se abrigar no abraço para fugir da hostilidade dos vários olhares— mas não consegui transmitir essa mensagem e ela; de alguma maneira bem familiar em minha existência eu sabia que, como sempre, nunca consigo relaxar em público. Ela sse propôs a me acompanhar até o embarque; eu recusei — como recuso muitas coisas que eu quero, mas que no momento, pra me proteger, não posso ter. Como explicar ali, para ela, que por fora eu estava linda, elegante e forte, mas que por dentro eu me via destruída e frágil? Eu me enrijeço, endureço meu sentimento, me escondo em mim para não desabar em público — e faço isso há tanto tempo na minha vida que nem sei como fazer diferente… quem me vê na rua e nos corredores da cidade certamente que pensa que sou amarga e prepotente, pois estou sempre evitativa e muito séria; mas mal sabem que estou apenas com medo e cansada.
Quando enfim cheguei ao local de embarque daquele aeroporto e esperava pelo meu voo, eu senti o de uma só vez todo peso daqueles olhares, de tal forma que meu único impulso foi [querer] chorar… chorar muito, pois doía a dor de ser eu nos últimos anos; bastou a primeira queda da dor líquid e quente para eu apressadamente secar o rosto e, novamente, me endurecer profundamente. Nem chorar eu podia. Uma monstra, travesti negra de dois metros de altura, com suas bijuterias e seu vestido kaftan vermelho, com um black montado, já choca o mundo; se ela chorar virará um espetáculo pelo qual sempre esperaram para ver. Eu tive que novamente engolir cada lágrima, que ainda não foram digeridas. Só essa semana já chorei várias vezes no meu travesseiro, e faço isso agora nessa escrita. O choro parece ser minha porta solitária de vazamento do que o mundo não me recebe bem; vazamento que aprendi a fazer na minha solidão do dia a dia, há anos.
Chore quando desejar! O que não te pertence não merece ficar com você!
Mas, sabe, hoje sei do meu valor, e não deixo ele ser derrubado por ninguém!
Minha rede de afeto, minhas amizades trans, minhas pessoas queridas, as pessoas que me apoiam e que me desejam bem, essas são as que me interessam! As amizades são nossos maiores presentes na vida!
Cada vez que vejo uma pessoa trans respirando, sorrindo, amando, vivendo suas vidas e seus desafios eu me regozijo dessa lembrança em que a vida diz “é possível estar trans no mundo”. Ver alguém questionando sua identidade de gênero e sua sexualidade é lembrar que o colonialismo não nos venceu! Ver mulheres se desprendendo do patriarcado que tanto as adoeceu e as privou da vida fora das cadeias do amor romântico é ouvir um grito de “ainda estamos aqui vivendo”. Pessoas negras e indígenas, com suas belezas insubstituíveis, com seus saberes que resistem ao ocidentalismo da vida, com seus modos de amar e afetar, me recordam de onde eu vim, e me informam que se a vida é uma incógnita ao menos não é uma página em branco. “Não vão nos matar agora!”.
Desejo do mais íntimo do meu coração que enquanto eu viver que seja de uma forma que não se conforme com as violências sobre corpos pulsantes e cheios de vida só porque querem viver seus direitos. Recuso a cisdadania que aceita somente o Cis, nego a psciscologia que não vê o ser além da teoria; recuso suas normas brancas e falidas.
Ainda repito o que eu disse no ciclo do ano retrasado:
“a grande e mais alegre esperança é que tudo acaba;
uma hora a contagem é interrompida;
em algum momento aquele relógio para de girar seus ponteiros;
nesse momento terá o seu descanso e sua inanição.
Enquanto esse dia não chega,
lava-se com lágrimas as machas deixadas em seu tecido preto.
Por muito tempo disse que ela deveria se calar;
hoje não!
Hoje quero que ela seja o mais perto do que pode ser antes de morrer.”
Hoje sei do meu valor, e não deixo ele ser derrubado por ninguém!
Vivas sejam as 39 voltas ao redor de mim.
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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