Velho Siul, neste momento que escrevo tu tens 637 meses que a sentir o ar do mundo ficas a chorar por qualquer motivo. Das três peças de um tripé, fostes o terceiro a ser fixado – formando um trio de peças diferentes, mas de mesmo material. O tempo passou. Ocorreu que, à tua maneira, tens vivido e assim a tua vida tens levado. O que de ti sei certamente não conta toda a ópera, sei em boa parte pelo que escuto, mesmo assim, isso não me seria confiável se outrora os teus passos também eu não enxergasse, ou de tuas pegadas eu não tivesse mínima ciência.
Hoje, sei que tens formado novas tranças, e de ti gerada é uma nova peça. Tens uma casa na cidade de solo vermelho e pelo sol ardente; tens também um abrigo onde crias fomentadores do teu ego; como uma casa assombrada tal é esse lugar, onde diferentes classes de vertebrados a encerrar os põe de dia e de noite. Dizes com alegria que os tens – o mesmo sentimento, entretanto, eu receio que eles aí não experimentem. Que isso é doloso e desnecessário não me convém reafirmar, acabo de dizer-te. Há, todavia, uma coisa que me leva a pensar, chegando a conclusões um tanto assustadoras: Por que é que, tu que pode se mover, busca por um título na previdência que te permitiria gozar de teus deleites como se de fato “inválido” fosses? És tu um inválido? Mais: sabes, ao menos o que é um ser inválido? Mas assustador é ver que, se preciso fosse – como dizem que já o fizeste – de intelecto desprovido simularias para que perante a lei recebesse o “selo áureo” condecorando-o a aposentado por invalidez.
Muito embora esse selo tem sua validade e real aplicação no campo físico, no que tange a esfera social, não sei se tu buscas o selo por necessidade física ou por temer do sossego ser incomodado. Depressão é uma doença real (a qual merece ser levada a sério), por isso devem ser usados os devidos tratamentos. Mas, ao ver-te – e assumo o risco de julgar-lhe além do devido, como também as evidências me apoiam a ideia de não haver juízo algum – sinto que a tua invalidez existe mais no plano imaginário que no físico.
Nossa sociedade escolhe de termos realmente intrigantes para classificar as pessoas. Aquele que não pode mais atuar no trabalho – seja por qual for o motivo – é dito inválido. Por outro lado, como bem sabes, quem não busca um papel humanitário, que não existe enquanto ser fraterno e solidário e que não pensa, não o é assim nomeado. Ser inválido é realmente apresentar um infortúnio que lhe garante a aposentadoria? Diga-me, ó Siul, que achas? Certamente que já ouviste falar de Stephen Hawking, de Beethoven, Jean-Dominique Bauby. Este último, após sofrer um acidente vascular cerebral, teve todo o seu corpo subitamente paralisado. Restou-lhe apenas o movimento de seu olho esquerdo. De toda maneira, ainda que diante desse quadro que em demasia excede ao seu próprio, ó Siul, Bauby disse uma frase muito poderosa: “Decidi parar de ter pena de mim mesmo. Além do meu olho, há duas coisas que não estão paralisadas: minha imaginação e minha memória”. A saber, ele é o autor do livro O escafandro e a Borboleta.
Finalizo por perguntar-te, velho homem velho: com o vigor de teu corpo e de teus olhos, que fazes da vida? Que uso fazes, desde que nascera, da tua imaginação? Que propósito de vida estabeleceste? Nada que possua átomos dura para sempre – fique sabendo. As pernas do tripé hão de desgastar-se e em nada voltarão a ser. E quanto a ti, tua memória, tua imaginação e consciência; que pretendes? Que nada também sejam? Mais uma vez pergunto-te: Consideras-te um inválido? Ou inválida será a tua existência se dela não te apossares e mudares os teus passos?
Nada há de mais desprezível no ser humano que a incapacidade de ser humano. Todos podemos crescer nesse caminho de incertas veredas. Mas só cresce quem toma consciência da vida. Só toma consciência da vida quem não invalida sua imaginação.
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos