Era uma tarde qualquer, em um mês do qual não me lembro, do ano de 1999. Eu andava pela Avenida Valter Boveri, na cidade de Osasco-SP, quando vi, em um terreno baldio, algumas lâminas de vidro abandonadas. Naquele momento só consegui pensar em uma coisa: levar aquelas lâminas para casa e pedir ao meu pai que montasse um aquário para mim – não aguentava mais ficar admirando os aquários nas vitrines de Pet Shop. [penso logo existo faço]. Assim o fiz. O meu pai não tinha habilidades de vidraceiro, então ele levou a quem entendesse do assunto; dois dias depois, lá estava eu com o meu lindo aquário de 45L. Que contentamento! Quase cantei “quem me dera ser um peixe…” de tanta que era a alegria. Muito tempo se passou, e a verdade é que até hoje, dezenove anos depois, eu ainda tenho um aquário. Atualmente, três vezes maior que aquele primeiro.

Durante 11 anos eu trabalhei com aquários, desde a venda de acessórios, até consultorias sobre montagens de grandes projetos. Fui convidado para escrever dois artigos em revistas especializadas. Atendi muitas e muitas pessoas que precisavam de aquários e que desejavam comprar peixes ornamentais. É verdade que aprendi muitas técnicas sobre aquarismo, bem como ministrei cursos para estudantes de graduação e pós-graduação, mas uma coisa não me escapou nessa trajetória: aprendi algo que ia muito além da relação consultor/cliente. Eu observava como o preconceito exercia suas tiranias, mesmo quando o assunto era um simples peixe dourado dentro de uma caixa de vidro com água.

Caro leitor, pode parecer que estou confundindo as coisas, afinal, o que tem a ver falar de aquarismo em um blog que se chama Devaneios Filosóficos? Deveria se chamar Devaneios aquáticos… Mas está tudo certo!

[continuando…] Como em todas as áreas de uma sociedade carente de princípios éticos, no ramo do aquarismo as pessoas costumam agir de forma bem execrável: elas tem por hábito colocar tudo em “caixas” – segregar sempre que possível e ser superior ao outro é quase que uma regra inexorável. Um “bom” aquarista, diziam,  era aquele que possuía um aquário plantado ou de água salgada – são os níveis mais exigentes de aquarismo. Por outro lado, se alguém dizia que tinha um aquário com kinguios (peixes dourados) era visto, na melhor das hipóteses, como amador (como se fosse um pecado ser principiante); em um caso mais grosseiro, eram chamados de pobres e tratados com desdém, já que os peixinhos dourados costumam ser os mais comuns e mais baratos em todas as lojas e feiras. Sem dizer que torciam o nariz dizendo que “kinguios são muito básicos (sem graça) e que sujam muito o aquário”.  O que fazia menos sentido era o fato de que, entre os próprios criadores de kinguios também havia uma rivalidade. Eu não falei, mas apesar de kinguios serem os peixes mais comuns no aquarismo, existem aqueles que são ditos “de raça” e esses são bem estimados (pois é! sempre há uma maneira de  querer ser melhor que o outro). E é aqui que entram os meus devaneios filosóficos: por que existe sempre essa mania – para não dizer necessidade – de se criar estereótipos que subjugam outras formas somente para que se alimente uma ideia preconceituosa? Mais: por que as pessoas não podem simplesmente viver sem a necessidade de se reafirmarem como quem diz que “o meu aquário é maior e mais caro que o seu”?

Eu escolhi o aquarismo como exemplo por que hoje eu estava alimentando os meus kinguios e o pensamento saltou-me os olhos; eu gostaria de crer que, no máximo, isso se restringisse somente ao aquarismo,  mas, infelizmente, essa obsessão por inferiorizar uma coisa para valorizar a outra está presente em praticamente todas as esferas da sociedade. Muitas pessoas hoje abraçam a ideia do preconceito racial porque, entre outras razões, eugenistas do século XIX e XX usavam da pseudociência para dizer que negros, indianos e mongóis eram inferiores aos brancos (preciso citar os impérios escravocratas?) –  o Darwinismo Social foi uma intrujice consagrada que derramou muito sangue; nordestinos são tratados como motivo de chacota em São Paulo porque determinados paulistanos não aprenderam a respeitar as diferenças regionais, preferem fiar-se de que o sotaque de São Paulo é o único correto; o que dizer da misoginia? Mulheres são desvalorizadas, aviltadas e violentadas diariamente pelo horrente fato de que sociedades patriarcais milenares sustentaram e venderam a ideia de que os homens são melhores que as mulheres – essa ideia foi vendida há milhares de anos, e ainda hoje milhões de pessoas continuam comprando-a pelo preço da ignorância (a biologia não aprova essa ideia… ou melhor, alguém que tenha um encéfalo funcional jamais aprovaria essa ideia… a situação está crítica!).

Yuval N. Harari usa do conceito de criação imaginada intersubjetiva para explicar porque certos pensamentos são tão bem consolidados na história da humanidade e por vezes tão difíceis de serem desfeitos. Ele diz que “Intersubjetivo é algo que existe na rede de comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos. Se um único indivíduo mudar suas crenças, ou mesmo morrer, será de pouca importância. No entanto, se a maioria dos indivíduos na rede morrer ou mudar suas crenças, o fenômeno intersubjetivo se transformará ou desaparecerá. Fenômenos intersubjetivos não são fraudes malévolas nem charadas insignificantes. Eles existem de uma maneira diferente de fenômenos físicos como a radioatividade, mas seu impacto no mundo ainda pode ser gigantesco“. Percebe-se, então, que comportamentos que suscitam o preconceito, sejam  eles entre aquaristas de um bairro da periferia em São Paulo, ou entre etnias em todo o mundo, existem porque se fazem presentes na consciência subjetiva de um número necessariamente grande de pessoas. Essas redes de comunicação não são recentes, milhares de anos foram necessários para que elas tivessem seus fios reforçados com aço inoxidável. A história do aquarismo começou por volta do ano 50 da era crista, com peixes mantidos em caixas de mármore com  a frente de viro. No entanto, o gérmen que originou todos os preconceitos, incluindo o mito do aquário perfeito, é muito antigo – data de milhares de anos. Talvez seja verdade que, como diz Harari, em seu livro Sapiens – uma breve história da humanidade, o Homo sapiens se habilitou em formar grupos e dividir a população em “nós” e “eles – assumindo que todos os que não são “nós” automaticamente são maus e devem ser eliminados.

Os  males da humanidade não são frutos de explosões que chegam de repente, eles crescem aos poucos, suas raízes são pivotantes e suas ramificações profundas afirmam-se lentamente. Quem costuma ter pressa somos nós, que viveremos, quando muito, 100 anos. A história não tem pressa, ela não precisa se preocupar com o dia de amanhã, suas raízes crescem sem desespero, entram em todas as brechas possíveis, e são notadas apenas quando racham as calçadas, erguem os muros, e trincam as paredes. Só tem pressa quem sabe que um dia morrerá. A explosão nazista começou e terminou em um piscar de olhos se comparada com a evolução da espécie humana, que se estende por mais de 6 milhões de anos. Todavia, o que despertou em Hitler e em seus companheiros e adeptos um desejo de limpeza étnica e dominação social já existia há muito tempo, sob formas variadas. O gérmen do preconceito pode desenvolver-se em formas que superam o poder de imaginação e da criatividade humanas. Pode parecer exagero, mas o mesmo gérmen que me faz olhar para um kinguio e para o seu dono e desprezá-los simplesmente porque eu tenho seis acarás disco blue-diamond em um aquário ao estilo ADA é o que me faria exterminar cerca de seis milhões de judeus se na Alemanha nazista. A forma de atuação é variada, mas a essência é única: o preconceito.

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 

 

REFERÊNCIAS: