Você já parou para pensar que para se seguir um caminho que leve uma pessoa a ter melhores comportamentos é preciso, entre outras coisas, saber de duas informações importantes: Onde estamos? e Aonde queremos chegar?

Fazer as perguntas certas é, em muitos casos, mais importante que ter respostas boas sobre tudo [como se isso fosse possível]. Do que adiantaria a uma pessoa saber de todos os passos para se atingir um estado mental que lhe permitisse ser profundamente fraterna, observadora, uma agente social efetiva – como se fosse um verdadeiro manual… -, se ela não tem a menor ideia de qual é o seu estado atual (onde estamos) e qual o verdadeiro propósito de vida (aonde queremos chegar)? Provavelmente essa seria um vida alimentada por falsas esperanças, na qual se buscaria por qualquer coisa que brilhasse aos olhos sem a menor ideia do que se está fazendo com aquilo. Seria como uma mariposa que, buscando por um feixe de luz, lança-se nas chamas de um lampião, queima-se e morre acreditando que ali estava o seu verdadeiro projeto de vida. Ao contrário de Homo sapiens, mariposas não fazem perguntas complexas (até aonde podemos compreender), supõe-se que elas seguem um algorítimo bioquímico “impresso” em seu DNA, não precisando, então, “pensar” no que fazem ou dizem.

Quanto a nós, “seres pensantes e digníssimos por natureza”, o que nos conduz às chamas? Por que somos atraídos por qualquer coisa que brilhe intermitentemente? Saber as causas que contribuíram para o estado atual da humanidade não é algo difícil – mas é complexo. Assim, vale dizer que complexo não é o oposto de fácil, mas de simples. Ao se buscar por um endereço, no Google Maps, por exemplo, poderão surgir diversas opções. Caso seja indicada uma rota com grandes avenidas, com raros desvios para a direita ou para a esquerda, considera-se o trajeto como simples e fácil. Entretanto, se a rota apresentar múltiplos desvios, com direito à rotatórias e retornos, não significa que o caminho seja  necessariamente difícil, ele apenas pode ter mais passos a serem seguidos – isso significa que ele é complexo. Escalar uma montanha tem apenas um passo geral: subir. Mas suspeito que não seja algo fácil. Nesse sentido, entender o processo que a humanidade enfrentou desde sua primitiva formação – o que inclui as suas interações com outras espécies e com outros Homo sapiens – até o presente momento é algo de grande complexidade. Isso alberga, entre outras necessidades, muita leitura, observações genuínas, análises críticas do entorno e de si mesmo e, sobretudo, honestidade e humildade. Não é difícil, é complexo. Logo, é uma ação que requer que sejam feitas boas perguntas que, funcionando como etapas, por sua vez, podem ou não ter boas respostas e, como se não fosse o suficiente, podem ou não apresentar respostas. Mesmo assim, é preciso reconhecer a origem dessas perguntas – eis aqui uma tarefa realmente complexa.

De fato, há tantas coisas que participam cotidianamente do processo de formação social, no que diz respeito à sua dinâmica e estruturação, que seria demasiadamente pedante falar de tudo em um único post – por isso trago uma reflexão sobre aquilo que considero exercer grande força sobre tantos outros fatores que criam abismos entre pessoas e pessoas, e entre o mundo vivo e o não-vivo. Falo, portanto, da maneira como temos nossas ideias criadas e desenvolvidas. E, por falar em orientação e propósito de vida, por aludir à atração de animal pelas chamas, bem como por analisar aquilo que é complexo ou não, fica aqui um bom questionamento:  Será mesmo que as ideias pelas quais vivemos e morremos todos os dias de nossas vidas são verdadeiramente nossas? Se sim, como sabemos disso? Se não, de onde elas vêm e quem as colocou em nossa “cabeça”?

Existe um comportamento na natureza, sobre uma ave, que simboliza muito bem o que quero dizer: refiro-me à reprodução do Cuco canoro (Cuculus canoro). Esse ser interessante existe porque a evolução selecionou um comportamento bem curioso. A fêmea do cuco, quando próxima de pôr seus ovos, sai em busca de ninhos para que possa ali fazer suas posturas – são verdadeiros parasitas. Interessantemente, apesar de constatado que aves da família Cuculidae parasitam mais de 100 espécies diferentes de outras aves, cada espécie de cuco tem uma especificidade pelo ninho que será parasitado. O mais curioso é que, em muitos casos, no primeiro sinal de ausência do ninho alvo, a fêmea do cuco chega no ninho, remove os ovos da outra ave e ali deposita o seu. Mais: geralmente coloca apenas um ovo por ninho, buscando por quantos ninhos forem necessários, para aumentar as chances de que ao menos um ovo seja chocado. Para fechar o “simbolismo”, a ave dona do ninho choca o ovo de cuco, o filhote intruso nasce e é criado como se fosse filho legítimo da ave enganada. A escolha da espécie a ser “traída” foi fundamental nesse processo evolutivo. Dá até para pensar que é mentira (mas não o é), pois o filhote de cuco é muitas vezes maior que o da ave que o criará; mesmo assim, ela segue criando o bebê usurpador “jurando de pé junto” que o filho é dela.

Imagem relacionadaFilhote de cuco(preto) alimentado pela ave dona do ninho (acima) que foi parasitado. Observe as discrepâncias de tamanhos e coloração.
Fonte da imagem: clique aqui.

Trazendo essa analogia para a nossa vida enquanto seres humanos, quando alguém não sabe onde está nem aonde quer chegar, torna-se um ninho livre para um cuco mal intencionado iniciar o seu processo de perpetuação da espécie. Ao contrário de quem não tem propósitos na vida, um “cuco” sabe exatamente o que pretende, e poderá usar de mentes disponíveis e desinteressadas para dar cabo ao seu plano de sobrevivência. Não é nada raro conversarmos com pessoas (pessoalmente ou pelas redes sociais) que afirmam totalmente seguras de si que suas opiniões são originais e que suas ideias são somente suas garantindo que ninguém as colocou em sua cachola, completando a fala dizendo que não aceitaria que ninguém colocasse nada em suas “cabeças”. A má notícia é que vivemos um sistema social que funciona com objetivos declaradamente interesseiros, sem o menor pejo pela maneira que será utilizada para seduzir e conduzir seus ácidos projetos.

No entanto, cuidemos para não cometer um ledo engano! Seria ingênuo supôr que somos inteiramente livres de pensamentos alheios. Inevitavelmente incorporamos uma ideia aqui, outra ali, e assim vamos formando quem somos – a grande questão está em tomarmos consciência disso o mais rápido possível, antes que funcionemos como fantoches. O que você acha? Eu costumo dizer que um pensador que se valorize na existência humana deve ao menos saber o que têm em sua mente e, claro, de onde vêm seus pensamentos – isso permiti-lo-á dominar os pensamentos antes de ser dominado por eles.

Oras, para onde quer que voltemos nossos olhos, vemos uma avalanche de informações, “sugestões” de compras e viagens (que são quase que obrigações), anúncios por todo lado dizendo – 24 horas por dias, 7 dias por semana, durante todo o ano – aquilo que devemos fazer, como devemos nos comportar em cada lugar, o que e onde devemos comer, qual a roupa ideal que devemos usar de dia ou de noite, qual o melhor livro a ser lido… etc, etc – a lista é realmente grande! Além disso, a questão do preconceito racial, da homofobia, da intolerância religiosa ou da xenofobia são provas incontestáveis de como até mesmo ideias estúpidas são aceitas diariamente, manipuladas por um ser de vários tentáculos, ou por uma equipe infinita de cucos, prontos para parasitar o primeiro ninho vazio que encontrem; tais equipes são sustentadas por mentes que deixaram de pensar no exato momento em que aceitaram chocar um parasita. É tolice acreditar que estamos imunes a essas flechadas e tentáculos ou que podemos jamais estar sujeitos a tais dominações intelectuais. Suspeito que se uma pessoa me diz possuir tal imunidade é porque o ovo já foi chocado, e o bebê cuco está recebendo uma ótima alimentação.

Por isso, é indispensável um olhar questionador e um pensamento honesto e humilde para se perceber como um possível alvo e entender que diariamente qualquer indivíduo pode estar na mira dos olhos parasitas, que veem em qualquer mente a possibilidade de ninhos propícios e férteis. Precisa-se cada vez mais de discernimento – em doses diárias. Aludindo ao que disse uma vez o palestrante Leandro Karnal, “o processo de construção pessoal é como banho, deve ser tomado todos os dias. Se não tomar, fede“.


Para não perder o estilo, aqui vai um exemplo do dia a dia, que demonstra até que ponto somos capazes de chegar com nossa ignorância e falta de proteção intelectual.

Você já parou para pensar que o machismo é um verdadeiro ovo de cuco, chocado diariamente por inúmeras mentes outrora vazias? Numa sociedade em que o ódio contra as mulheres (misoginia) mostra-se como um desastre estrutural, infelizmente muitas pessoas não fazem a menor questão de eliminar essa desgraça de nosso meio. Observe, por exemplo, a letra da música “Vidinha de Balada“, da dupla Henrique e Juliano. Avaliem-na atentamente. Assistindo a uma aula de filosofia, na qual se tratava de machismo e feminismo, o professor começou a citar exemplos de músicas que apresentavam conotações explicitamente machistas. Achei essa música um ode ao mal gosto e à imbecilidade. Como costumo fazer, fui acessar a música e ler alguns comentários; pelo menos, assim saberia um pouco do que pensa parte do povo sobre isso (como se fosse um pequeno espaço amostral de um experimento social). Dito e feito; apesar de algumas pessoas identificarem o caráter misógino da música e criticarem sua letra, uma grande parcela deixava ali seus agradecimentos à dupla, elogiando a música e declarando serem fãs. Acredite se quiser, mas alguns comentários foram estarrecedores. Daí surge a questão: será que essas pessoas estão conscientes do que fazem, no sentido de realmente identificarem o machismo e a misoginia embutidos na música e, mesmo assim, continuarem ouvindo-a e declarando-se satisfeitas? Se a resposta for sim, a situação está bem pior que eu imaginava. Mas, se a resposta for não, fica evidente que são indivíduos que chocam ovos de cuco e sequer se dão conta do mal que estão criando. Comentários como os seguintes, dispensam qualquer explicação (leia a letra da música antes de ler os comentários, se não, não perceberá a gravidade destes):

Vai namorar comigo SIM.png


Concluindo os questionamentos …

Para que tenhamos possíveis respostas àquelas duas grandes perguntas – Onde estamos? e Aonde queremos chegar? – é indispensável sabermos de onde vem a ideia que reside no nosso mais íntimo e pessoal desejo. É parte crucial dessa empreitada reconhecer que, se não houver uma contínua vigilância pessoal, nós podemos aderir aos ideais mais sujos de nossa sociedade. Hoje em dia há uma intensa produção na máquina de alienações – ela não para – cada vez mais as músicas apresentam sintomas de virose cultural, com letras que de forma clara incitam o preconceito e o desrespeito; programas de televisão mostram coisas que superam o absurdo da superficialidade humana; a polaridade nas redes sociais crescem exponencialmente, ninguém ouve ninguém; olhares recheados de intolerância pairam sobre pessoas que decidem frequentar uma igreja – ou quando dentro da mesma igreja um fiel decide buscar por outra denominação; o mesmo acontece quando alguém decide optar por outro gênero, vestir roupas que não são ditadas pela moda, ou buscar por si mesmo baseando-se em outros modelos de crença que não os ditos tradicionais. Quando entenderemos que a intolerância, o preconceito e, sobretudo, o egoísmo são os ovos de ouro do cuco? Se queremos chegar a algum lugar, precisamos calibrar o nosso GPS interior. Precisamos saber se as nossas ideias são de fato nossas ou se fomos feitos de palhaços pelo fantasma que vaga pela humanidade desde sua origem!

Recomendação de leitura

01) Se desejar, leia esse poema Cuco, escrito por Giovane G. Gianellini. Achei que foi feito com maestria e com um olhar crítico do que representa o cuco, principalmente no sentido filosófico!

02) Leia esse texto: Kinguios, o aquarismo e o preconceito

Mesmo aqueles que as pessoas imaginam serem seus desejos mais pessoais geralmente são programados pela ordem imaginada.
(Yuval Noah Harari)

#VocêJáParouParaPensar?

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos


A imagem utilizada para compôr a capa dessa publicação pode ser acessada clicando aqui.