Olá Kilise! Como vão as coisas por aí?
Cá estou, e peço-te que me desculpe a demora. Era 18 de Fevereiro quando te escrevia a primeira carta, mas não me esqueci de você… cá estou!
Continuando o nosso assunto, quero deixar uma coisa avisada, que não direi tudo aqui. Acredite, minhas declarações e observações são demasiadamente longas! Outras cartas virão (cada uma a seu tempo, aguarde! As coisas não andam fáceis para ninguém… não moro em Saturno, meus anos têm apenas 12 meses).
Só para situar a nossa conversa, na última carta eu dizia que o assunto desta seria de que “andam usando o seu nome para disseminar muitas discórdias“. E isso é intensificado a cada dia que se passa. Usam “Kilise” para tudo, sem nenhum ressentimento nem respeito. O mais curioso é que talvez você pense que me refiro a difamações objetivas, a cartazes com mentiras explícitas ou a placas com informações falsas. Mas não é bem isso (ou melhor, não apenas isso). Eles estão te usando da pior maneira imaginável: como fonte de alienação. Eu ousaria, ainda, a te comparar à morfina, mas, como se ela fosse fornecida livremente e sem “prescrição médica” a qualquer um que chegasse à farmácia do hospital queixando-se de dores. E nem precisaria ser uma dor de nível 5, bastaria a suspeita de que a dor pudesse vir pela madrugada que já correriam à farmácia popular. Fato é que, não querendo ter o trabalho de prevenir os males, optam por mascará-los… e assim levam o seu nome por todo lado. O que me faz pensar que o povo prefere os analgésicos aos métodos de cura propriamente ditos. Cuidar-se exige esforços. Ars est celare artem.
Acho interessante dizer-te uma coisa mais. Você é representada das mais variadas formas, seja estilo Medieval, no Barroco ou no Gótico (Ah! Notre-Dame! Que imponência!); és produzida com toda a sorte de materiais e estás presente em praticamente todos os lugares. Contudo, é aqui que reside o grande detalhe: dentro de tuas paredes é que se reúnem os seguidores de Soíd-Le. Cada grupo tem um ritual, cada ritual uma doutrina e, em cada doutrina, uma exclusão diferente. Verdade é que, embora tenha sido criada com objetivos bem estabelecidos, tua estrutura física não é mais tão importante atualmente, o que realmente está ruindo são as estruturas invisíveis – aquelas subjetivas. E é dessas que te falo aqui! A tua carcaça, se cair, em poucos dias pode ser reconstruída, inclusive mais formosa. Não digo o mesmo de sua subjetividade.
No tocante da prosa, lembro-me que falei naquela carta que não frequento mais a sua casa de cor cinza; todavia, talvez não deixei muito claro o que pretendia dizer, mas, na realidade, não frequento nenhuma de suas construções, de nenhuma cor e em nenhum lugar. Não consigo mais enxergar-te como na minha infância e adolescência. Tentei até há pouco tempo, mas não deu mesmo! Eles estão por toda parte. Metástase? Virose? Infecção generalizada? Não sei ao certo. Mas, você viu que tentei, não viu? Você vê? Sei lá! Por que é que ninguém faz nada? Está tão cômodo assim? Barba non facit philosophum.
Nesse sentido, só posso dizer que a sua “criação” se deu por um motivo teoricamente agregador, com o propósito inicial de propagar a lei de Soíd-Le e de seu filho. Este, considerado (também teoricamente) a nova Kilise na Terra, e aquele, o que vingará o vitupério deste. Por que digo teoricamente? Porque na prática isso não acontece nem de longe. Mas, por favor, não entre em pânico! Pode ser chocante ler isso que te anuncio, mas é a realidade em sua mais atilada forma. Tem mais: o que eu pude perceber é que em suas habitações falam meramente da Política da Barganha. Seria essa uma “nova” modalidade de administração social? Quiçá!
Nessa forma de administração social, usada desde que o Homo é sapiens, eles prometem o paraíso em troca de algumas atitudes que se enquadrem na ética de cada país onde você está. E, como todo bom sistema de barganhas, este precisa de uma moeda que faça girar as engrenagens do horror; foi, então, eleito o medo por instrumento monetário. Pena que não paramos por aqui; sendo bem honesto, você só existe por dois motivos básicos (ou, fundamentais), e nenhum deles incluem a santidade, a pureza de espírito ou devoção genuína. Os verdadeiros pilares que sustentam o seu frontão são o medo (como acabei de dizer-te) e a recompensa (que vem na forma de uma vida eterna com Soíd-Le, livre de todo mal e esforço). O medo embute a ideia de punição, obviamente. A recompensa, por sua vez, exige que um comportamento pré-estabelecido seja seguido, com o mínimo de desvios para que o integrante seja, então, merecedor dos louros dessa flâmula. Pobres daqueles perdidit ovium que, escolhendo a liberdade de pensamento, foram aprisionados pelos olhos da condenação. Menos mal que esses olhos nada podem fazer, desde que não os valorizemos.
É, minha nobre Kilise, precisaremos de mais prosas para que eu te conte tudo.
Ah! Já ia me esquecendo… Santa Amnésia que me possui de vez em quando… sabe aquele receio que tive sobre o possível desvio da primeira carta? Então, ele não é tão forte hoje. Percebi que as pessoas não gostam muito de ler, e, quando tentam fazer isso, não estão acostumadas com enigmas – coisas que exigem conexões cerebrais e raciocínio esquemático estão em decadência na sociedade. Logo, se a leitura exige o ato de pensar, poucos são os candidatos. Está no seu livro, se não me engano em Lucas, 10:2: “A seara é grande, mas os obreiros são poucos“. Commoditas omnis fert secum incommoda.
Ademais, como dizia o seu ferrenho acusador Voltaire – lá em 1794: “Só mesmo por pessoas esclarecidas é que este livro [no caso, essa carta] pode ser lido; o povo em geral não está preparado para esses conhecimentos; a filosofia jamais será sua partilha. Aqueles que dizem que há verdades que devem ser escondidas ao povo não devem alarmar-se; o povo não lê; trabalha seis dias por semana e, no sétimo, vai à taberna. Numa palavra, as obras de filosofia são feitas somente para os filósofos e todo homem honesto deve procurar tornar-se filósofo, sem se vangloriar de sê-lo“.
Que coisa! Se essas palavras fossem repetidas hoje, passados 224 anos de sua escrita, nenhuma vírgula seria censurada.
NOTA 01: Para consultar as expressões em Latim, clique aqui.
NOTA 02: Ainda assim, alguns que leram a nossa conversa acharam erroneamente que Kilise é o mesmo que Soíd-Le. A culpa não é minha! Pensa quem se esforça e se esforça quem pensa! Cada um bebe daquilo que lhe mata a sede! A digito cognoscitur leo
NOTA 03: Enquanto a terceira carta (que será a parte II, pois a primeira carta foi a introdução) não chega a ti, vá pensando sobre tudo que te falei até hoje. Pretendo detalhar bem essa ideia de medo e recompensa. Prometo-te!
Até Logo!
Andreone T. Medrado
Sábado de Março de um ano qualquer no Brasil. Dessa vez não ouço Mozart. Está muito tarde, já é madrugada, e aqui está muito quente. Ouço apenas o soprar do meu bom e velho amigo ventilador.