Eflúvia é o seu nome. Ao contrário do que comumente se vê, em que os pais registram os seus filhos em cartório conferindo-lhes um nome qualquer, Eflúvia a si mesma registrou. Rumores dizem que essa atitude é recente; observações atentas, no entanto, mostram que isso surgiu de um longo processo adaptativo e introspectivo de si mesma. Como em uma daquelas mudanças que acontecem ao longo de milhares de anos, perpassando os séculos dos séculos e com eles seus desafios e constrangimentos, assim se deu suas entranhadas e estranhas modificações – com a ressalva de que é um movimento cíclico, repete-se, mas nunca na mesma pessoa mais de uma vez.

Fatores sociais e psicológicos são os melhores candidatos, senão os convocados, para responder aos porquês dessa mudança que caminha sem um destino aparente e de forma adirecional. Mesmo assim, cabe dizer que a mudança nem sempre é visível aos olhos de todos, logo, o que muda para pode ser estático para B; a menos que compartilhem da mesma lente de visão de mundo, nenhum nem outro enxergarão as mesmas coisas simultaneamente.

Eflúvia, como o próprio nome sugere, é inconsistente, vaporosa mesmo, dissipa-se sem dificuldades, tolhe-se a si mesma simplesmente porque se acha desnecessária e sem valores. Quem construiu esses valores que ela sequer os enxerga em si mesma? Quem lhe disse que um ser humano tem um padrão a ser reproduzido sem desvios e com perfeição? Quem foi, diga-me? Ou, diga-lhe! São respostas complexas, eu sei, mas não impossíveis, basta pensarmos um pouco e entenderemos que existe um conjunto de tentáculos que manipula uma massa chamada gente e que conduz toda ela a propósitos bem estabelecidos, mas que geralmente favorece um punhado que cabe em uma colher de sopa de todo o caldeirão.

Mas, sem querer ser o chato da vez, também digo que há outro conjunto de tentáculos;  estes, muito mais poderosos que os primeiros, e que efetivamente podem transformar a nossa conduta enquanto gente são justamente aqueles que vivem em nós, enraizado em nosso âmago profundo. Tentáculos fortes, viçosos, aderentes, que deslizam-se uns sobre os outros prendendo mais e mais e ainda mais aquilo que outrora e sempre deveria ser livre. Quem os deveria controlar? Suspeito de que devesse ser nós mesmos. Por que não o fazemos? Suspeito ainda mais convictamente de que é porque daria muito trabalho. Pensar, agir, existir, dominar os nossos defeitos, enxergar, “ser” e tudo o mais que possa conferir autonomia ao indivíduo dá trabalho de se conquistar, mas é necessário. Generalizando, na física, trabalho = força x distância. Essa força deve ser constante, e a distância efetiva; ora, se não aplicarmos nenhuma força sobre nossos objetivos e tampouco percorrermos uma distância rumo às suas formações, não haverá realização de trabalho; sem trabalho = sem energia empregada… sem energia… já deves saber, não?

É por isso que Eflúvia não se esforça, acomoda-se e aceita a sua normalidade ditada por outros. Olha para si mesma todas as manhãs e diz que “ninguém a aceita como ela é“, mira-se no espelho e sussurra “mais um dia desgraçado, com pessoas que me desprezam“, senta-se à mesa, toma seu café e declara sua sentença, dizendo que “não vê a hora de tudo isso acabar; oxalá que os séculos dos séculos passassem-se e que o ciclo se encerrasse para ela ali mesmo“. Quem sou eu para aconselhar à Eflúvia? Que tenho eu que oferecer-lhe? Sei não! Mas “alguém” disse algo uma vez, lá nos séculos passados… foi uma frase interessante e que ecoa nas cavernas do tempo até hoje: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerá o universo e os deuses“… acho que foi Sócrates, mas que importa, sei que a sugestão é nobre!

Se eu pudesse dizer algo? Deixe-me ver… Bom, diria que, apesar de nossas dificuldades e limitações, render-se só confirma que não conseguiremos sequer contemplar nossos objetivos tais como os são, que dirá vivê-los. Temos o direito de “desistir” da luta e assistir a manipulação de nós mesmos, mas nunca de culpar os demais por isso, nós por nós que decidimos parar e abaixar a espada. Aludindo à Homero, Aquiles não fez nada de útil em quase toda Ilíada enquanto ficava resmungando em sua tenda. Mas, logo que movido de força e vigor, atirou-se aos campos e derrubou o príncipe de Troia, Heitor. No entanto, sugiro que não esperemos que, assim como aconteceu com Aquiles, nosso bem maior seja destruído e só então criemos coragem de lutar. Pois assim foi, só depois da morte de seu amigo íntimo, Pátroclo, que o guerreiro deixou a tenda e decidiu defender os gregos. Um pouco que ele acalmasse e dominasse seus tentáculos interiores teria saído à luta e poupado a vida de seu Amigo e de muitos outros. Por isso, repense suas atitudes! Repense se está fazendo o melhor que você têm enquanto não tem condições de fazer melhor ainda!

Entregar-se à vaporosidade da vida é admitir-se Eflúvia. Quem é Eflúvia? Eflúvia é a nossa personalidade quando condicionada à morosidade e à desistência de nós mesmos. Somos todos Eflúvia no momento em que olhamos mais para fora que para dentro; somos Eflúvia quando reclamamos mais que fazemos; quando criticamos no outro aquilo que reverbera em nós; quando, podendo pensar, preferimos que pensem por nós e conduzam-nos por um caminho que não sabemos, mas que também não exige esforços. Somos Eflúvia quando desistimos da vida enquanto estamos vivos. Somos Eflúvia quando aquilo que somos deixa de “ser”.

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 


NOTA: As imagens utilizadas para compôr a capa dessa publicação foram obtidas aqui: nuvem, plano de fundo.