Veja… quando a polícia quer uma coisa, fará qualquer coisa. Está ouvindo? Qualquer coisa. Dirão mentiras sobre nós. Nos prenderão. Nos matarão.
(Diálogo da série “Olhos que Condenam“)
Há poucos dias terminei de assistir a uma Série: “Olhos que condenam“¹ [em inglês “when they see us” – ou seja, quando nos veem]. Teria muita coisa a ser dita sobre aquilo a que eu assisti e absorvi. Muita coisa mesmo. Mas deixarei essa visão completa para outro momento que eventualmente possa acontecer. Aqui quero apenas fazer um recorte – quero levantar um ponto bem conhecido da gente preta: os mesmos olhos que condenaram injustamente à prisão aqueles cinco garotos em 1989 não se fecharam até hoje, 30 anos depois. Pelo contrário, eles estão bem abertos e continuam nos condenando, ou, se preferir a tradução mais fiel, continuam nos vendo. Independentemente da série se passar nos EUA, é mais que evidente que também aqui no Brasil insistem – com ou sem provas – que nosso lugar não é onde quisermos, mas em pontos bem estabelecidos por um sistema fortemente segregador, violento, racista e altamente seletivo; para tal sistema, nosso lugar é nas periferias da cidade – às margens, nas cadeias, nos empregos estereotipados e pouco valorizados.
Quando nos veem, não veem pessoas, tipo Homo sapiens dotados de humanidade; não veem homens nem mulheres que de fato possam ter feito algo certo ou errado. O julgamento é muito mais pontual, premeditado e intencional que se pensa. Quando nos veem, e sempre nos veem, tratam logo de nos condenar. Essa condenação nada tem a ver com ser realmente alguém que está fugindo, roubando, estuprando ou agredindo. A condenação é bem sutil – pois parece que não querem percebê-la; mas eu digo que é uma sutileza de extrema violência, é brutal. Eles nos condenam pela cor da nossa pele. Se se é preto ou preta, nada mais é necessário para a condenação, pois nos veem de longe; como que por radares bem sensíveis. Uma vez “capturados”, o discurso já está pronto, e se as provas não forem convincentes, eles se convencem de que são; e, pronto. O preto e a preta está mais uma vez condenado. A primeira condenação foi existir em uma sociedade potencialmente racista; a segunda é seguir vivo e sendo observado. São olhos que nos condenam, de dia e de noite, ainda em 2019.
Terminar de ver uma série como essa pode causar um milhão de sentimentos, desde revolta até medo – todos profundos em intensidade. Mas certamente você sentirá um temor inigualável, uma ânsia de que precisa se vigiar; sentirá um receio imensurável de que estão [mais uma vez] te vendo [e te condenando]. Você pode sentir tudo ao mesmo tempo, mas esse temor e essa sensação de que está sendo filmado e filmada só acontecerá em verosimilhança com uma condição: se você for preto(a) em um país que é racista. Se você vive no Brasil isso com certeza é uma realidade!
Talvez você saiba, mas não custa relembrar que das mais de 726 mil pessoas encarceradas em junho de 2016 no Brasil, cerca de 40% eram presos provisórios. Mais da metade dessa população era composta de jovens entre 18 a 29 anos; 64% são negros². A verossimilhança entre a série e a realidade se confirma a cada dia, a cada caso igual ao de Rafael Braga.
Fazendo um paralelo com a filosofia, há um livro que – muito embora ele trate de um contexto aparentemente diferente – vale a pena a leitura: “Vigiar e Punir – a história da violência nas prisões“³, de Michel Foucault. Entre uma abordagem histórica, densa e cuidadosa, o autor traz pontos sobre o ato de punir, associado à prática de vigiar que dialogam muito com a série Olhos que condenam, mas que nesse momento, mais que nunca, merece ser traduzida fielmente para Quando eles nos veem (já que o ver, aqui, tem essa conotação de vigiar mais explicitamente). Não pretendo dar spoilers da série, contudo, imaginando que você já a tenha assistido, deixarei algumas frases do livro que parecem fazer parte da elaboração do roteiro.
Antes disso, ressaltando um ponto importante, quero dizer que, embora o livro traga referências do sistema penal francês primordialmente, a semelhança entre o que ele revela e o que se passa em Olhos que condenam é tão grande que eu tive a impressão de que um falava do outro. E, antevendo que algum defensor ou alguma defensora de Foucault resolva se pronunciar e dizer que estou cometendo anacronismo histórico ou, ainda, que estou me apropriando injustamente de fragmentos isolados para embasar a minha fala, quero reconhecer de antemão que texto fora de contexto é pretexto. Mas que, nesse caso específico, eu assumo a responsabilidade dos recortes e os insiro aqui com o objetivo de verificar a verosimilhança entre as condições observadas quanto ao ato e ao mecanismo de vigiar e punir, que me pareceram tão intimamente ligadas à série que não os poderia deixar de fora. Portanto, e finalizando o texto, confira alguns desses recortes:
A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível. [pg. 32]
Por um lado esse sistema das “provas legais” faz da verdade no campo penal o resultado de uma arte complexa; obedece a regras que só os especialistas podem conhecer; e consequentemente reforça o princípio do segredo. “Não basta que o juiz tenha a convicção que qualquer homem razoável pode ter… Nada mais errado que essa maneira de julgar que, na verdade, não passa de uma opinião mais ou menos fundamentada”. […] Chegará o dia em que a singularidade dessa verdade judicial parecerá escandalosa. [pg. 34]
No interior do crime reconstituído por escrito, o criminoso que confessa vem desempenhar o papel da verdade viva. A confissão, ato do sujeito criminoso, responsável e que fala, é a peça complementar de uma informação escrita e secreta. Daí a importância dada à confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial. [pg. 34-35]
Pela confissão, o próprio acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal. Como já dizia o direito medieval, a confissão torna a coisa notória e manifesta. A esta primeira ambiguidade se sobrepõe uma segunda: investiga-se de novo a confissão como prova particularmente forte, que exige para levar à condenação apenas alguns indícios suplementares, que reduzem ao mínimo o trabalho de informação e a mecânica de demonstração; todas as formas possíveis de coerção serão utilizadas para obtê-la (grifo meu). […] Pela confissão, o acusado se compromete em relação ao processo; ele assina a verdade da informação (grifo meu). [pg. 35]
O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade; por isso os juízes não devem recorrer a ela sem refletir. Nada é mais equívoco. Há culpados que têm firmeza suficiente para esconder um crime verdadeiro…; e outros, inocentes, a quem a força dos tormentos fez confessar crimes de que não eram culpados (grifo meu). [pg. 36]
Informações do livro nas referências abaixo.
Ficarei por aqui! Deixe nos comentários as suas impressões sobre a série, será muito bom ouvir opiniões diferentes sobre o assunto.
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTAS:
(¹) Assista ao trailer dublado: https://www.youtube.com/watch?v=lG7rpaWICEQ
(²) Saiba mais sobre o caso de Rafael Braga e sobre os dados mencionados acessando <https://www.brasildefato.com.br/2018/06/20/simbolo-da-seletividade-penal-caso-rafael-braga-completa-cinco-anos/>.
(³) Michel Foucault. Vigiar e Punir – a história da violência nas prisões. 25ª edição – Editora Vozes, Petrópolis. 2002.
– A foto utilizada para composição da capa foi obtida aqui.
Obrigado por compartilhar a reflexão Andreoni
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