E Um foi saindo dos outros e entrando cada vez mais dentro de si, como numa introspecção irreversível. Entrava numa maciça morte viva, cheia de vazios; e esvaziada de vida;

Num complexo de entrar que é ser; mas num ser que se desfaz em percepções que demoram a serem entendidas;

Um sentia que não poderia deixar de se fechar tanto quanto percebia a liberdade ser uma fraude. Ele, que de si pensara dominador e de seus desejos eleitor, percebe que na história de sua vida, o que menos pode é decidir livremente o que quiser. Na verdade, vez ou outra pode até querer algo fazer; porém não consegue desejar o que querer. “Liberdade figurada”, Um diz;

De inquietamentos Um se enchia; pensava com frequência sobre “por que as coisas não podem deixar de ser a qualquer momento sem que se percebam os movimentos?”; “por que as pessoas não podem ser o que quiserem? Inclusive passado… Inclusive nada…”;

Fechado, Um se iludia. Iludido, Um se fechava;

E fechando-se desfazia-se de si em si – ou do que de si sabia existir. Iludido, inevitavelmente, por ser impossível estar solto e separado do todo, Um pensava alto e às vezes deixava escapar que “ninguém existe sozinho – mas o todo não é ninguém… ninguém é o outro”;

[Sabe, caro leitor e cara leitora, existe uma coisa nele que o torna assim, tão Um, tão igual a muitos e muitas por aí, mas que lhe causa negação: ter nascido num mundo já pronto antes de se perceber Um, um mundo tão já Todos – o espaço e as coisas era na soma aquilo que uma complexa teia de habitus e costumes, que com crenças e desavenças sustentava durante muitos anos. Perceber-se nisso não foi necessariamente sua escolha, ou, pelo menos, não escolheu desejar querer saber. Apenas aconteceu, como numa cascata em que a partícula que se adianta sempre é acompanhada por uma sucessora e antecessora, de forma interminável.]

Hoje, Um é como uma pupa, uma mistura programada de células que se arranjam de forma silenciosa, mas sem deixar claro o que dali sairá – a menos que já tivesse sido antes. A priori, o desejo é que fosse como os modelos pré-estabelecidos: vívido, bem sucedido, dentro das normas, disciplinado e gentilmente dócil. A tudo rejeitara como se o mais óbvio fosse dizer não.

As modificações continuaram por acontecer… lá atrás, um pouco; depois mais, e mais… uma transformação silenciosa se projeta aos berros por trás do visível; ninguém vê, ninguém ouve;

Arranjando-se e se modificando; fechando-se e se iludindo;

E vinham mais pensamentos soltos e angustiados que Um não sabia conter no pensamento privado, acabava ululando que “vive-se mais quando não se sabe para que existir, sofre-se menos quando se sabe exatamente para aonde ir depois da morte”;

Mas o que fazer se depois da morte o resto é trote? Qualquer garantia de pós-vida é um fosso, qualquer crença no pós-morte não é sem esforço; uma doença que se cura na ilusão;

Quem entende Um? Ele mesmo não o faz; ele mesmo não se importa com isso;

Assim como vários humanos, Um também já quis mudar o mundo. Já quis transformar os conceitos e as ideias; hoje só que ser;

Hoje, Um não espera muita coisa desse lugar chamado vida;

Ele espera o momento em que o silêncio não seja esse inexistente dos dias caudalosos de uma vida em sociedade. Aqui há silêncios mais barulhentos que um mar furioso; mas ele idealiza aquele silêncio de um vazio que houvera antes, e que há de haver depois – inevitavelmente;

Contrariando a maioria, para Um, ser livre é estar preso à ideia de liberdade; ser feliz é prender-se a tristeza de um estado que inventaram; amar é odiar-se por se tornar escravo de uma condição; existir é fazer-se no molde que não se escolhe e não se conhece bem, numa malha que não se entende e num gosto que, seja seu ou não, não é percebido a tempo – ou quase nunca; existir é desaparecer de si para aparecer os outros;

Decidido? sobre o quê?;

Preparado? Para quê?

Mas pensando… pensa longamente… “e se…?”, “como seria?”;

Em suas ousadias até furtou a frase de Kafka e a rescreveu em sua pessoa: Um não esqueceu de recordar a si mesmo, de tempos em tempos, que reflexões frias, mesmo as muito frias, são melhores do que decisões desesperadas”;

“Desesperar” vem do latim, e significa “perder as esperanças“, “deixar de esperar“; mas não é disso que Um fala, não é assim que ele vive. Pelo contrário, o que Um mais faz é esperar;

Um espera por um dia; um dia bom, um dia bonito, um dia certo; um dia infalivelmente certo para ser.

Aliás, Um espera cuidadosamente apenas pelo dia em que será mais livre – ou, em suas palavras, menos preso. Só que isso é também se prender à ilusão.

O óbvio é ser Todos; mas às vezes ele é Um;

O óbvio é aceitar o julgo e sofrer menos – mas Um o rejeita sem acordos; ainda que essa rejeição seja por vezes mais retórica que prática, ainda que o desacordo seja silencioso, ele rejeita que deve aceitar o acordo tácito das massas;

É o grito que não se ouve;

A luz que não ilumina;

O calor que esfria;

O cheio de vazios;

Um ser que não é nada; em um nada que é tudo;

Um é a antítese do óbvio; e o óbvio seria não dizer aquilo que ninguém vai entender, mas ainda assim ele diz.

 

vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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