Era a última sexta-feira de agosto, de 2019. Por volta das 07h25min, eu andava sentido à estação de trem quando, subitamente, percebo alguém gritando de modo raivoso pela rua. A princípio, pensei que ela [a mulher que gritava] estava reclamando de um carro que havia interrompido a faixa de pedestres; mas isso foi imediatamente descartado ao percebê-la repetindo os gestos com as mãos em tempos quase compassados. O ritual era simples, porém facilmente percebível: primeiro, sempre gritando, ela dava passos largos, rápidos e carregados de furor (pisava como quem queria quebrar o chão); depois gritava ainda mais alto e abria e fechava os braços; no gesto final, virava-se para trás e apontava para alguém [que talvez vivia apenas em sua imaginação, mas que realmente parecia estar ali]. Esse comportamento foi-se repetindo por todo o percurso no qual eu pude observá-la – aproximadamente por 10 minutos. Além dela como alvo, eu mirava os rostos das pessoas que passavam pelo mesmo trajeto e que também a percebiam. Algumas faces mostravam-se assombradas, outras riam, enquanto a maioria entortava a cabeça para ver a cena pelo máximo de tempo possível. Para os espectadores, “ali vai a louca“; fora isso, “vida que segue!“
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Essa nomeação [a louca] não está partindo exclusivamente de mim, mas daquilo que tradicionalmente é visto como quem pratica a loucura (ao menos é o que sugere a leitura popularizada no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Larousse Cultural)1: o sujeito louco é alguém que, não gozando de suas faculdades mentais, está “fora de si; furioso, alucinado; extraordinário, fora do comum“, etc. Portanto, e a partir disso, aquela mulher era uma “louca” [?].
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Se te é útil acrescentar, vale dizer que eu estava na calçada oposta à mulher. “De longe, vê-se o alto”, diz um ditado romano – e, na ocasião, eu percebia os gestos [dela] e as faces [dos demais]. Cada indivíduo, à sua maneira e com seus sinais, denunciava aquela criatura que gritava; como se um sussurro coletivo afirmasse que ela estava fazendo o oposto do que se esperava de um ser “normal”. Eu não quis interromper completamente a minha loucura momentânea, continuei com os fones nos ouvidos e segui observando a cena ao som de Mozart – mas isso não me impediu de observar cuidadosamente o que se passava ali. Digo até que, agora que tudo aconteceu, não ter ouvido o que exatamente ela dizia me ajuda a não filtrar o evento e discutir sobre ele sem querer achar uma relação de causa e efeito. Prossigamos!
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Nessa cadeia de observações e indagações, considero solicitamente que tudo ali condenava aquela humana que era multiplamente desumanizada; silenciosamente tudo a tachava como desviante; os olhares diziam que aquilo que ela estava fazendo não cabia no escopo humano lentamente absorvido por um sistema de disciplinarização dos corpos; risos mostravam a cisão entre o normal e o anormal, transformando uma prática assimétrica em um espetáculo de divertimento – mas uma diversão que também normaliza posturas e ações. Num complexo socializante em que existem marcadamente relações de poder, quem dele participa não deve perceber-se num conjunto de normatização que, a partir de uma constante e intensa vigilância, condena, pune e ao mesmo tempo torna exemplar aquilo que deve ser imitado e destaca sob vários mecanismos o que deve ser rejeitado2. Quanto mais subjetiva a assimilação de informações, mais objetivo o comportamento social – quanto mais objetivamente se comporta em um conjunto, menos se considera anormalizado. Dócil não é quem não se manifesta, é quem não se percebe em uma manifestação que é parte de um sistema de manifestações.
Os devaneios filosóficos desse texto estão justamente no fato de destacar a existência de uma potencial ignorância generalizada, presente em cada indivíduo – em mim, em todos, em todas, e até em você. Possivelmente você já ouviu uma frase a qual anuncia que “brincando se pode dizer de tudo, inclusive a verdade”. Essa frase, atribuída a Freud3, pode ser adaptada para outros contextos e para outras situações. A ignorância de si, a que me referi, diz respeito à não percepção de que nossas atitudes nem sempre são aquelas que de fato desejaríamos realizar. Aprendemos e seguimos determinados códigos civis, morais e sociais que nos dizem quais devem ser nossas condutas diárias. Algumas, as mais gerais e mais aceitas, são praticadas quando estamos em um conjunto no qual outros indivíduos pactuam tacitamente do mesmo ideal.
Nas ruas, pode-se rir, mas sem chamar muito a atenção; nos transportes públicos podemos conversar, mas moderadamente e sem invadir o espaço alheio. Nossas roupas são padronizadas lenta e gradualmente ao longo da história de cada cultura, e sempre há um limiar que deve ser respeitado: para cada período histórico, uma variação no modo de se vestir é aceito enquanto outros são rejeitados – inclusive, as pessoas que usam roupas chamadas de “diferentes” ganham o título de “estilosas” ou “autorais”, quando na verdade apenas estão nos extremos do que ainda assim é aceito sem configurar um ato ilegítimo. Essa ilegitimidade consiste na “animalização” do hábito: quando as roupas são rasgadas, não por um estilista, mas por falta de reposição, por rolar muito pelo chão sujo, e quando esta roupa e aquele indivíduo que a utiliza cheiram mal. E, vale destacar, cheirar mal e estar sujo e rasgado não são suficientes para configurar a ilegitimidade do hábito. É preciso que a criatura deslegitimada se comporte dessa forma porque ela não possui condições intelectuais de fazer diferente; ou, dito em outras palavras, é preciso que sua incapacidade de ser gente a torne um objeto sem autonomia, desprovido de qualquer senso de autoridade sobre si e sobre o mundo. Uma pessoa que se mostra sem roupas em grandes mídias, não é considerada uma louca – em muitos casos é até venerada e recebe títulos diversos; por outro lado, alguém que sai exibindo sua nudez pelas ruas, chacoalhando a cabeça, gritando e com olhares que se perdem no horizonte, demonstrando que a priori não sabe o que está acontecendo, é imediatamente rotulada como anormal – ou louca. Rir e conversar desesperada e descontroladamente, sem um limite de borda entre quem o faz e as outras pessoas, também é considerado um sintoma de que as coisas não vão bem – ou, aludindo a Shakespeare, “há algo de podre no reino da Dinamarca”4.
Dizer aquilo que gostaria de ser dito pode até ser uma opção, mas geralmente não é a escolha feita. Falar sobre uma insatisfação é até uma possibilidade quando isso acontece entre pessoas que não apresentam uma relação hierárquica supra-necessária. Entre amigos muito íntimos, por exemplo, pode sim haver uma demonstração de insatisfação, sobretudo quando essa demonstração não apresenta possibilidades de ruptura de laços afetivos considerados importantes. Por outro lado, na maioria das relações interpessoais, expressar-se direta e transparentemente não chega sequer a ser um ato cogitado. Diante de uma relação de poder, na qual uma das partes é hierarquicamente superior e uma eventual ruptura de laços possa significar o desemprego da parte inferior e consequentemente a falta de dinheiro para comprar comida, por exemplo, o mais comum é a inanição e a supressão de uma latente verdade sobre o momento. O hábito – ou a necessidade – de garantir a sobrevivência nos acompanha desde as savanas africanas, há centenas de milhares de anos. Livrar-se disso agora, nesse curto intervalo de tempo em que construímos impérios, cidades e sociedades mais complexas, é menos possível que inteligente de ser considerado. Nesse contexto, fenômenos como a brincadeira (ou, na linguagem psicanalítica, o chiste), entram como mediadores daquilo que ‘se é’ e do que ‘se percebe’; ou, ainda, daquilo que se deseja e daquilo que se quer. Em suma, mecanismos que permitem dizer o que se pensa sem ser necessariamente prejudicado é uma forma de aliviar tensões internas – ou, caso prefira, de revelá-las ao exterior.
A pessoa tachada de louca é uma dessas que, a partir do julgamento externo, configura-se como alguém não controlado internamente. Dizer que alguém está louco, como vimos lá em cima, pode ser o mesmo que dizer que esse alguém está “fora de si” [você destacou esse termo quando leu a frase antes?]. Mas quem, de fato, está em si quando precisa ser outra pessoa para se manter confortável? Digo, se precisamos nos adequar a uma normatização por razões diversas, é coerente dizer que estamos de fato “dentro de si“? E se não estamos “dentro de si“, mas sim “fora de si“, não seríamos também loucos e loucas, mas de uma outra perspectiva? Olhar para aquela mulher na rua e supô-la uma louca não diria mais de mim que dela, já que na minha loucura cotidiana procuro (conscientemente ou não) ser o que não sou de fato? São perguntas que soam estranhas, mas que fazem parte dos devaneios.
Se por um momento ela estava, por assim dizer, desequilibrada, descontrolada, furiosa, alucinada, é razoável coletar informações do senso social e concluir que ela é anormal (ou incomum); e assim dizer que o comum é uma borda imaginária que circunscreve todos indivíduos que atuam de acordo com um conjunto normativo coletivamente praticado – logo, o normal é seguir as normas – e é, também, ser comum. Isso não significa dizer que “ser normal” é “ser você” em todas suas instâncias; mas aceitar suprimir algumas delas para não se tornar alvo de punição, já que da vigilância raros indivíduos [para não dizer nenhum deles] escapa. Se retomarmos mais uma vez a alusão feita à Shakespeare, veremos que na tragédia apresentada entre os anos 1600 e 1602, o personagem Hamlet ao perceber-se em perigo começa a se comportar como um louco, mostrando-se incapaz de discernir, compreender e responder às coisas ao seu redor; isso para não ser eliminado e seguir vivo. O louco diz o que quer, enquanto na coletividade se diz o que se espera.
É justamente na absorção dos valores coletivos que está a relação de poder que permeia a construção de uma sociedade. Quando seus componentes humanos não são capazes de se perceberem atuantes no sistema de vigilância – como seres que, não percebendo, estão contribuindo para todo um sistema de controle; quando a disciplinarização é aplicada ao nível intersubjetivo – docilizando corpos ao ponto deles não se considerarem submetidos a um poder – ainda que totalmente submisso a um conjunto normalizador; quando os olhares, as falas, os risos e os dedos que apontam partem justamente de quem já está docilizado, tudo que figura para além do cenário atuante é logo alvo de sinalização.
Se não percebemos que nossas escolhas não são necessariamente nossos desejos oriundos de uma suposta liberdade, ou dito em outras palavras, se não percebemos que podemos até fazer o que desejamos, mas não necessariamente podemos escolher aquilo que é desejado, esse é um indício de que estamos disciplinados ao ponto de servir como sentinelas dentro de uma complexa relação de poder e subjetividade que compõe os aglomerados humanos. Além disso, se [para você] “adestrar” é um termo que está mais relacionado com um humano que “instrui/controla” o comportamento de um outro animal [não-humano], talvez seja chocante você ler que nós somos seres adestrados. Perceber-se assim, além de não ser nem conveniente nem confortável, pressupõe uma caminhada para o contraintuitivo. Mas, ou se lê as coisas, ou se acredita que está lendo algo diferente só para parecer mais agradável.
Adestramento é uma palavra que explica o modus operandi de um sistema de poderes que dociliza corpos a partir da vigilância e da punição. Seria mais intuitivo conceber um sistema talvez material ou corporativo, controlado por algo ou alguém e com objetivos bem determinados de para aonde e como se conduzirá a humanidade. Mas isso não parece fazer sentido quando olhamos de longe. Não existe justiça na História5 – muito menos uma linearidade ou constância. Cada evento que acontece não pode determinar precisamente o seu sucessor. Um conjunto de incidentes (ou de ocorrências) atuam caoticamente na construção histórica. Apesar de pouco intuitivo a uma primeira vista, talvez faça mais sentido pensar no desenrolar histórico-social como um processo que decorre de práticas somadas e absorvida por um sistema de poderes e privilégios.
Se, por um lado, existem práticas sociais que transformam o meio contextual [as relações humanas, os valores coletivizados, as narrativas enquanto transmissoras de histórias e a divisão de grupos], por outro lado, existem sistemas sociais que absorvem essas práticas e que a partir de institucionalizações de métodos utilizam de mecanismos para subsistirem. Mesmo assim, apesar das supostas semelhanças, eu diria que a ideia de uma estrutura geral que governa o mundo ou as sociedades não parece plausível de ser assumida. Ademais, a “Sociedade“, o “Sistema“, o “Governo” não são entidades, mas geralmente aparecem nos textos desse Blog como termos que resumem os assimiladores das dinâmicas humanas e que participam de uma sistematização complexa oriunda da interação entre indivíduos. A sociedade é uma sociedade de indivíduos – na qual qualquer predição é por conta e risco do autor. “E é dessa maneira que a sociedade humana avança como um todo; é dessa maneira que toda a história da humanidade perfaz seu trajeto: De planos emergindo, mas não planejada; Movida por propósito, mas sem finalidade.“6
Por esses motivos e por muitos outros, contemplar aquela cena da sexta-feira e ver que ser “a louca” era ser também a diferente, a rejeitada e fora da curva, me fez pensar no que realmente significa estar “fora de si“. Os olhares alheios denunciavam todo um conjunto de comportamentos implícitos, prontos para denunciar quem pisasse fora do círculo, ou nele quisesse entrar sem que estivesse habilitado(a) para isso. Por outro lado, sinto que “ser louco“, ou seja, ser dissidente da normatividade, é uma maneira mais rápida de poder ser você dentro de um lugar que padroniza modos de ser, agir e pensar. Quando Machado de Assis brilhantemente criou um defunto autor, ela dava a Brás Cubas7 o direito de ser e de agir como realmente lhe era posto por natureza. Da mesma forma, estar louco, sob delírios, me daria a liberdade de dizer aquilo que de fato eu diria se fosse natural ser natural; loucos tem a vantagem de perder seus filtros e atuar com menos amarras que aqueles indivíduos fortemente convencidos de sua [pseudo]espontaneidade. Quantas vezes você quis explodir essa sua carcaça socioculturalmente construída mas rejeitou esse devaneio alucinado somente para não ser considerada uma pessoa louca? E quantas vezes você apontou para alguém que se despiu de seus filtros e lançou um “Que pessoa mais louca!“?
Se o preço pago por ser louco ou louca na era clássica, sobretudo no século XVIII e XIX e começo do XX8, era ser internado contra sua vontade, simplesmente por representar algo que “maculava” a imagem de uma sociedade “sã”, hoje ser louco é ser paradoxalmente vexado por sua invisibilidade. Vexado porque, como você já deve imaginar, o sujeito louco vai contra todos os estereótipos considerados normais; e invisível porque ali, no momento da vigilância e do juízo coletivo, não se condena nem aponta um ser humano específico, mas um conceito: a loucura em si. Quem é de fato o louco ou a louca pouco importa; seu nome, sobrenome, idade, vicissitudes, etc. de praticamente nada valem. O valor intrínseco está em perceber, sinalizar e vigiar a loucura enquanto objeto de perseguição; seu poder reside justamente nesse comportamento de retroalimentação que atua sobre a pessoa não-louca (ou [A]Louca – sendo o “A” uma partícula de negação). Mas no fim das contas, vale questionar quem se aproxima mais de um normal humano. Se ser um humano normal é estar disciplinarizado, ser um normal humano pode estar mais perto de representar a si mesmo como de fato ocorrer interiormente. Quem consegue isso? Como fazer isso? Não me pergunte, pois não vou me arriscar em dizer algo precipitado. Mas pense melhor quando vir alguém e ousar dizer que esse ou essa, aquele ou aquela é louco ou louca. Vai que você não se perceba loucamente dentro de uma disciplinarização.
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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REFERÊNCIAS
(1) Grande Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. Ed. Nova Cultural. 1999. pg. 577.
(2) Michel Foucault. Vigiar e Punir – a história da violência nas prisões. 25ª edição – Editora Vozes, Petrópolis. 2002.
(3) Sigmund Freud. Os Chistes e Sua Relação Com o Inconsciente. Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Vol. 08. 1905.
(4) William Shakespeare. Hamlet. Ed.Penguin, 1ª edição. 2015.
(5) Yuval Noah Harari. Sapiens – uma breve história da humanidade. Ed. L&PM. 27ª edição. 2017.
(6) Norbert Elias. A Sociedade dos Indivíduos. Ed. Jorge Zahar. Trad. de Vera Ribeiro. 1994. pg. 59.
(7) Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Coleção Ler é Aprender, do Estadão. Click Editora, São Paulo. 1997.
(8) Michel Foucault. A história da loucura. Ed. Perspectiva; 10ª Edição, 2014.