O ato de rir. Talvez uma das manifestações mais primevas do que se entende por ser humano; certamente a característica e a ação que não se controlam, embora se disfarcem, não se detêm, apesar de eventualmente suprimirem-se por alguns instantes. Rimos porque estamos em explosão biológica, mas também por não serem suficientes as palavras; por um ato-inato mais socialmente ressignificado e fortalecido, rimos de algo ou de alguém por infinitas razões. Contudo, nem todo riso tem igual significado e valor – nem todos os risos são pelos motivos que se acreditam que devam ter.
O que é o riso senão a demonstração do nosso estado mais animalesco? Este – que posto à modelação constante e a condicionamentos ininterruptos nos transforma desde em pessoas alegres a verdadeiros seres loucos, carentes de qualquer juízo intelectual – é cheio de simbologias. Assim acontece com uma organização humana, construída por ações de indivíduos que compõem um complexo corpo social. O riso teve seus significados histórica ou socialmente adequados a momentos e contextos específicos. Por isso digo que rir “transforma desde em pessoas alegres a verdadeiros seres loucos, carentes de qualquer juízo intelectual“. Porque, dentro das normatividades às quais insistentemente e num silêncio vigente e vigiante atribuem ao ato de rir determinados lugares e significados: a depender de sua localização e de seu contexto, quem ri pode estar revelando seu profundo contentamento e sua mais espontânea reação diante do mágico e do lúdico, da mesma forma que, dependendo das mesmas condições o ser risonho pode, por estar destituído de suas “faculdades mentais“, ser considero louco – loucura, essa, também fruto de uma construção simbólica. Muda-se o contexto, o conceito e o lugar da fala e logo se mudará o sentido e significado do riso. O riso enovela, amacia, une, reconcilia. Mas ele também classifica, pune, exclui, denomina, engaiola e macula um indivíduo, um comportamento, um conceito.
Se rir pode ser considerado como duplamente classificatório – bom e mal, aceito e rejeitado, “normal” e louco -, ainda assim ele consegue guardar semelhanças profundas entre os pólos. Quem ri está se expressando, está falando verdadeiramente de si para os outros ouvintes. É nesse sentido que, se no momento socialmente construído o seu riso não é bem-vindo, qualquer risada fora de hora e de ordem te marcará no grupo dos desviantes. Rir do nada, mesmo que esse “nada” signifique algo para você; rir da desgraça alheia; rir em um momento cujo assunto “pede” serenidade; tudo isso, e outros tantos, é mais que suficiente para deslocar o significado do seu ato de rir para um ponto de rejeição coletiva, de estranhamento mútuo e de não-lugar. Mas isso tudo nem é novidade, aprendemos a rir para as diversas manifestações, e mesmo contra os desviantes a construção social tem previsões – a resistência está prevista no conjunto social e nas relações de poder. Para além disso, não apenas ela está prevista como ela é uma constituinte obrigatória. A questão aqui é: o que dizer em relação ao riso que chora? ao riso que é líquido…?
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Opondo-se ao riso herege, louco, ao desviante da normatividade e da normalização, há aquele riso “correto” ou minimamente coerente e adequado ao script social: o riso diante do que pode ser risível; o sorrir para o que evoca sorriso e que, por assim dizer, deve ser sorrido. À parte as contraposições plausíveis e necessárias entre o lugar e o não-lugar do ato de rir, destaco o riso que te insere numa comunidade: na comunidade das pessoas felizes. Houve um momento na caminhada humana que se fez a antagonização entre felicidade e não-felicidade (que se popularizou como tristeza), usando como marcadores principais a presença do sorriso e a ausência dele (quando ele deveria existir), respectivamente. Dessa forma, pensando em ajuntamentos humanos, se você está entre seus semelhantes e não sorri, você “necessariamente” está triste, sem ânimo ou com algum problema mais específico – é o que talvez digam. Tudo isso porque diz-se – e boa parte de nós acreditamos nisso – que ser feliz é uma cláusula pétrea da constituição do ser humano – a qual um indicativo de seu cumprimento é o ato de sorrir. Se você está feliz, deve sorrir; se não sorrir, provavelmente, e muito provavelmente, não está feliz… ou, não tão feliz assim quanto se esperava que estivesse. Não acredita em mim? Pense em alguém muito, mas muito feliz. Como está o rosto dessa pessoa? E quanto a alguém triste, profundamente triste, como você o enxerga?
Não se engane com as aparências! Apesar dessas dicotomias e colocações que faço ao meu bel prazer servirem de sugestões para o significado do sorriso e para sua capacidade de identificação pessoal ou social, nem todas as pessoas que riem querem fazê-lo. Nem todo riso guarda em si um sinal de “está tudo tão bem!“. Às vezes – e aqui menciono o padre Antônio Vieira – o ato de rir pode ser, na verdade, o mais profundo ato de chorar. Nessa perspectiva, com a qual tendo a concordar fortemente, um certo tipo de riso pode expressar a instância máxima do ato de chorar. Quando as lágrimas são insuficientes para transmitir o que sofre o ser humano; quando o sentimento de tristeza não se localiza no mesmo estado de aceitação de seus semelhantes como o faria o riso; quando em seu estado mais latente de angústia-triste você não consegue chorar; aí, então, brota o sorriso. Aquele que passa facilmente pelos espessos filtros dos grupos, pelas grandes frestas da sociedade, e é logo recebido como o que de mais comum e estereotipado lhe foi estampado ao longo do tempo: se ri, deve estar no mínimo feliz, ou no máximo louco – jamais ‘triste’.
O riso triste, ou o riso-líquido, é aquele que aparece emaranhado nas fotos postas nas redes sociais, que expressam cotidianamente um sintoma de abandono de si, mas que buscam uma valoração a partir do reconhecimento externo. É riso-líquido quando você, não podendo ou não conseguindo ser autêntico(a), lança do sorriso para ao menos não ser estranhável no seu grupamento de semelhantes. Também é riso-líquido quando não se sabe bem o porquê, mas no momento de maior desalento surge em sua face o sorriso, viciado, disciplinado, obediente, profundamente triste para você, porém feliz para quem te olha.
Tristeza não é um mal em si, não é o fim da existência. Pelo contrário, ela é constituinte do ser humano, deve ser considerada – e será mesmo que você a desconsidere – como parte do nosso estado subjetivo. Só é necessário entendê-la e às suas vertentes e possibilidades mutacionais. Estar triste não é querer morrer; não é estar em vias de desistências da vida; tampouco significa prostração, ou o ato de derrubada de si, ou qualquer outro correlato que você queira elencar. Assim, estar triste pode ser – mas não se limita a isto – um estado de organização de ideias, de repensar as questões, de filosofar introspectivamente, de reagrupar conceitos, de construir e de desconstruir-se. É importante ser triste. Porém, ainda mais necessário é distanciar-se do estigma de tristeza como um sintoma de “fim de caminho“.
Num dizer bem simplista, mas razoável, estar em silêncio não necessariamente é estar triste – pode ser apenas a falta de vontade de falar com quem tem pouca ou nenhuma vontade de ouvir. Não obstante, ela [a tristeza] também pode servir não de diagnóstico, mas de pista indicadora de outros caminhos da condição atual do sujeito. Caminhos que um olhar observador pode antever – mesmo que [infelizmente] esse olhar seja como uma joia rara, mas paradoxalmente pouquíssimo valorizada.
Há, num extremo a ser considerado, aquela descoberta póstuma do que alguém queria dizer quando sorria. É justamente na nossa carência perceptiva, na nossa falta de uma observação que mira o outro ser humano e não somente o nosso desejo e a nossa satisfação sobre ele, que está a sobrevivência do que chamo de riso-líquido. Com isso, e geralmente depois que alguém deixou de existir, privando a si mesmo de sua vida orgânica, buscamos fazer o que já deveríamos ter feito: observar o que o sorriso queria dizer, de onde ele vinha e qual mensagem ele guardava. É num movimento retroativo, dentro de um contexto póstumo, que buscamos o significado do riso outrora entendido como qualquer coisa, menos como “variações de tristeza” que se modificou em desespero [“des-esperar”: perda de esperança]. Geralmente, no fim, o que se ouve nos arredores é algo do tipo “Mas como? Essa pessoa vivia sorrindo, era tão feliz!“, ou “Você viu as publicações dele(a), sempre sorrindo. Como pode fazer isso?“.
Todavia, o que de fato me assusta não são apenas olhos e ouvidos desatentos, mas aquelas pessoas que simplesmente dizem que “sorrir não quer dizer nada! Tanta gente sorrindo nas redes sociais, mas que na vida real é tristeza pura!“. Essas que dizem tal coisa geralmente não prestam atenção nos sorrisos que as cercam. Até têm essa noção de que sorrir não é sinônimo de alegria, mas isso só figura em sua mente como um mecanismo de defesa para que não pensem efetivamente na vida. Pensar nos detalhes constituintes de nossa existência requer uso de energia, e poucos Homo sapiens gostam de gastá-la. Logo, um mecanismo que embora mascare uma ação pensada seja utilizado, ele não representa nada de eficiente no entendimento do contexto. A pessoa simplesmente diz que “sorrir não quer dizer nada! Tanta gente sorrindo nas redes sociais e na vida real é tristeza pura!” e segue a vida se importando apenas com o mesmo de sempre: com seu umbigo e com a realização de suas fantasias. Mais importante que uma informação é o uso que fazemos dela.
Nesse sentido, nessa complexidade e nessa urgência, eu diria que, a despeito de ser o riso algo inato e também modificável, ele precisa ser entendido em seus contextos e variações – digo isso mesmo acreditando que esse pensamento seja utópico. De toda forma, reitero que risos podem ser muitas coisas, inclusive lágrimas. Há situações expressivas nas quais considero importante perceber que o riso é líquido. Ou, ao menos, pode ser.
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem usada para compôr a capa dessa publicação foi obtida aqui.