Hoje alguém se suicidou na casa 33. Mas talvez tenha sido ontem. A família decidira em cima da hora que passaria o final de semana com os parentes. Era sexta-feira quando todos deixaram a casinha no fim do escadão rumo à casa dos familiares no interior do Estado. Apenas ele ficou ali, disse que “não estava muito afim de passar o final de semana entre outras quatro paredes, alternando a visita entre pessoas igualmente desnorteadas e presas apenas para dizer que curtia a vida em família”. Um “estar em família” tal que lhe era menos um convite que uma aversividade. Além disso, quando insistiam no chamado e diziam “qual a vantagem de ficar preso em casa sozinho um final de semana inteiro?”, ele dizia que “presos todos estamos – o tempo todo, todos os dias -, a diferença é que uns preferem prender-se sabendo-se presos, enquanto outros dizem que o uso adequado do tempo justifica os grilhões”. Acostumados com essas respostas atravessadas, deram-se por decididos a ignorá-las: foram-se sem ele. Agasalhados e bastante protegidos do frio que fazia, fecharam o portão às 19h00.

A dúvida é honesta. Não sei ao certo se foi exatamente hoje, ou ontem. Quando abriram a porta ao domingo, à noite, imediatamente perceberam algo um tanto curioso. Lá fora não havia ninguém, o dia estava frio, uivante e silencioso – tudo calmo; mas lá dentro sentia-se o mistério evocado pelo leve cheiro que lembrava incêndio. O sofá cheirava a rumores de fumaça, a cortina sempre mantida a cheiro de amaciante era agora também fonte de uma suspeita misteriosa de brasa fria, o ar era bastante pesado ali. Fora isso, estava a vida sem muito suspense. Tudo em seu lugar, nada desajustado. A casa estava limpa como se feita a pouco; as seis cadeiras em ordem, simetricamente posicionadas em volta da mesa redonda; a pia, vazia e seca; o quintal de pouquíssimos metros quadrados, no máximo sete, estava limpo, apenas algumas folhas jaziam no canto onde parava a água da chuva. Aquele domingo amanhecera com garoa grossa e com um céu denso e cinza escuro. De toda maneira, nada naquela normalidade podia esconder o cheiro distante de fumaça, um cheiro frio e inadvertido. No escadão quase todos já haviam se recolhido para dentro de seus submundos, apenas as luzes estavam acesas; em algumas casas o alto volume das TVs anunciavam que seus habitantes estavam acordados, olhando sem vida para uma vida vazia que iludia uma certeza de que aquilo era viver. No escadão, um cachorro se abrigava da chuva na beirada entre um portão e a pingueira d’água. No número 27 um casal ousava enfrentar o frio para trocar carícias quentes no escuro perto das grades. Cada um à sua maneira animal buscava abrigar-se de algo… seja da chuva ou da solidão. Por sua vez, no número 33 os recém-chegados buscavam por quem ali ficou. Mas não estava na sala, nem no banheiro, nem em canto algum. Restava verificar o quarto – possivelmente estava, ou lendo, ou, dormindo.

O quarto dele era aos poucos percebido e se tornava mais próximo à medida que o cheiro outrora distante da fumaça se intensificava, como se saindo da brecha inferior da porta azul fechada. Mas o cheiro não vinha, ele estava ali. E estava como se parado, estacionado e frio. O seu quarto tinha um pequeno corredor entre o azul e o restante. Ao abrir a porta, sem fumaça alguma, sem chamas e sem nenhum tipo de alarido, a certeza silenciosa gritava que ali estava o mistério do sofá e da cortina. Ela adentrara o corredor sem saber no que pensar. Nada, absolutamente nada vinha à sua mente. Resolvera chamar por seu nome. Inútil. Ao acender a luz, nenhum sinal de incêndio. Tudo estaria impecável, se não fora o cheiro de brasa fria. Acabado o corredor, lá estava ele. Deitado. Uma face serena, pleno era o seu aspecto. De roupa trocada, mas descoberto sobre a cama, depositara-se ali o que sempre fora, mas sem as reações de que dizem serem humanas: ele era um corpo. Dessa vez, só isso. Um choque absoluto paralisou sua mãe, travando-lhe o corpo e a mente. De um lado, ela via o corpo, do outro lado, aquilo que ele elegera por causa e testemunha de suas últimas palavras que eram atos. Ambos – a testemunha e o testemunhado – guardavam algo em comum: já foram luz, já serviram de calor ao próximo, já brilharam… mas hoje, e talvez desde ontem (não se sabe bem), estavam frios e inertes. O seu bilhete fora percebido depois, mas não por seus familiares. Pensando que foi um descuido e passando o choque, veio o inevitável: explosão de sentidos! Um grito irrompia de modo tal que o escadão inteiro percebeu a vida além das telas, a casa toda foi invadida pelo desespero que destruía qualquer possibilidade de silêncio e avançava por cada brecha em seu caminho. Foi hoje que souberam do fato a família e a vizinhança. Naquele momento só existiam perguntas… nenhuma resposta. Nenhuma testemunha poderia dar do caso. Alguém se suicidou.

*  *  *

Em sua mente ele tinha sérios questionamentos sobre o que era o viver. Estava ali o tempo todo, pensando em si e em seu lugar. Certamente era louco em alguma instância, não poderia ser ele considerado o normal quando seu comportamento tendia destoar do mais abjeto mover de corpos em sociedade, tão normalizados e tão dóceis como sempre foram – pensava nisso enquanto conversávamos dias antes. Não era a ciência de que um dia morreria que lhe causava angústia, mas justamente saber que deveria viver uma vida bem avessa aos seus propósitos que lhe fustigava o entendimento. “Isso para quê? Para ser aceito?”

Dizia ser a vida social “uma caixa dentro de outra, infinitamente como bonecas russas, das quais escapar poderíamos jamais”. Gostava de viver? Nunca se soube. Qualquer afirmação minha é ambígua por natureza. Como que alguém que não suportasse a vida poderia dedicar tanto de seu tempo a entendê-la? Para que tanto afinco em saber os porquês se o pouco que sabia já lhe dizia mais do que precisava saber acerca do entorno? Pior: o pouco que sabia, ainda assim, ele não defendia. Analisava e criticava até mesmo o atravessar disciplinado de uma faixa de pedestres. Atravessando sempre ao sinal verde, fazia de si a contradição: “quem obedece a esses códigos, embora contribua para uma suposta ordem social e para sua ‘teórica’ segurança, serve também como modelo de disciplinarização”. Pensava nisso quando de algumas vezes em que, sendo obediente à norma, fora atropelado em seu pleno direito. Mesmo assim dava lição de moral em quem fazia errado essa disciplina cotidiana. Esse paradoxo ambulante não poderia ser normal. Mas, caso ele fosse, todos seriam loucos? Ele não era nada louco.

Disseram-lhe que os impérios foram construídos sob o intrépido discurso do tempo, não eram apenas falados, eram feitos, praticados; produziam-se na terrível materialidade à qual escapa as certezas e as previsões. Seriam sociedades inteiras erguidas sobre a manutenção e sagração do status? “Não há nada mais significante na vida do Homo sapiens que o brilho do status sobre sua égide”. Ele dizia ter lido algo desse tipo num blog que também dizia que “a humanidade havia sido fundada sobre o status, e que isso envolvia necessariamente a relação entre privilégios e identidades, as duas esferas de ouro e diamante às quais a humanidade devotava-se ainda que sem se dar conta – ao acaso”.

Ele sentia que seu rosto era mais uma construção social. Ele se incomodava ter de parecer o mais perto do senso e o mais longe de si. “Poderia ser destoante? Sim! Mas para quê? Ninguém estava prestando atenção, os filtros não captavam sua dissonância, as pessoas estavam ocupadas demais para pensar”. Quando, em sua infantilidade queria falar de seus desacordos, as pessoas à sua volta pensavam que sua ironia era só mais uma de suas usuais figuras de linguagem, e que sua acidez era para causar incômodo, e nada mais. Ora, ele dizia que tudo isso era verdade, mas não uma verdade completa. Ele estava sendo bem perto do que queria ser, mas era logo reinterpretado para algo bem distante. Foi quando deixou de fazer isso também. Resolveu perguntar menos com a boca, e mais com os dedos; decidiu não falar com pessoas outras além de si. Quando questionado, respondia e proseava horas a fio. Mas não queria puxar tópicos de discussão. Desanimava-o perceber que ninguém queria ouvir ninguém – era apenas um jogo de intelectos avarentos por medalhas, “ganhava mais quem sabia melhor sobre qualquer mentira”. “Para que quero viver num lugar no qual as pessoas não são verdadeiras e, quando são, suas verdades são tolas o bastante para não me agradarem?”. Eu o escutava sem querer (ou sem poder) discordar. Como discordar?

E aqui entra outro paradoxo: não queria necessariamente deixar de existir. Queria, apesar desse insuportável tédio que ele chamava vida, continuar nela. Detestava a forma como as coisas se conduziam, mas queria estar ali. Seria uma ilusão da mudança que o movimentava? Ou, talvez, desejava que no depois pudesse avaliar as coisas? Quanta ilusão num só corpo!

Depois da morte ele bem sabia o que acontecia. Nada. Mas quanto à vida pensava que também nada acontecia. “Era sempre o mesmo do mesmo. Formigas que se assustavam por alguma pisada na História, mas que em seguida formavam suas fileiras infinitas sedadas na consciência, e trafegavam sem porquê, por toda uma existência vazia”. Não havia sequer uma possibilidade de fazer algo novo. “O novo não era verdadeiro, e o verdadeiro não era novidade”. Tudo, exatamente tudo, estava mais ou menos disposto de modo a não lhe satisfazer por muito tempo. “É uma fantasia tão grande nessa sociedade, que as pessoas fazem coisas diariamente sem saber que seus atos são inúteis para o que elas pretendem: a felicidade. Suas conclamações são de puro egoísmo e interesse que giram ao redor de um único corpo: seus próprios corpos”.

“Para que se matar” – pensava ele “se depois nem saberei que me matei?”. “Mas para que viver?” Eram seus maiores questionamentos. Dizia que “o suicídio era a racionalidade mais irracional de todas que poderia passar na mente humana – mais irracional que a ideia de Deus”, já que se “supor morto não resolve ‘problemas’, e estar morto é não estar nada, uma vez que ali não existe consciência”. Pensei se seria uma fuga, um escape de alguma situação. Hesitei em afirmar isso – hesito até hoje, agora, inclusive! Ele pensava novamente que “não existe um sentido pessoal no ato de privar-se de sua existência… fazer isso não pode ser considerado como uma fuga, uma vez que só se foge de um ponto se houver outro como destino possível. E como estaríamos fugindo, ou indo de um ponto ao outro, se ao sair da vida, não estamos indo à canto algum? A morte não existe em si, não é um lugar, um ponto, uma parada que lhe oferece água após seu trajeto ter sido bem feito, ou chicoteadas como castigo de uma perversão”. Por isso que eu digo que depois da morte o resto é trote. Mas na hora eu não lhe disse absolutamente nada.

Até agora não entendi muito bem o porquê dele ter feito isso. Por outro lado, penso estar me enganando em não querer entender. Num lapso vultuoso penso que realmente sei, sinto saber aqui dentro, mas nego para poder entender o não entendível. Uma pessoa jovem, cheia de possibilidades, caminhos, ideias… estava tudo ali, naquele corpo encontrado frio sobre a cama. Quando eu tive a [de]sorte de vê-lo ali parado, foi como se num flash bastante rápido todas essas conversas houvessem reaparecido no ar, assumindo uma consistência que preenchia todo o quarto e que se misturava ao cheiro vestigial da fumaça. Quase fui sufocado pelas nossas conversas de um passado ainda fresco como ele o fora pelo silencioso óxido neutro.

Percebi ali também que ele começava a assumir personalidades diversas, que variavam conforme cada pessoa que dele falava criava um novo ser – jamais existente, porém agradável aos lábios e aos ouvidos. “Pouco ou nada vale quem você se mostra. O que as pessoas veem de você depende muito mais da bagagem que cada uma leva em si do que de você propriamente dito”. Não sei como refutar essa ideia agora póstuma. Saber que não existe liberdade, amor, justiça, altruísmo e pós-morte, talvez, tenham sido pontos que levaram ele ao autossilenciamento. Eu tentava não pensar em nada disso naquela hora, mas como? Ele era isso. Ele dizia que “a vida, enquanto conceito, era indiferente aos seus componentes; que a existência era atrelada aos seres vivos, mas acentuadamente desinteressada neles; a frieza do mundo se mantém à parte de nós à medida que sentimos sua presença e tratamos logo de nos aquecer com criações imaginadas. Imaginamos qualidades, forjamos uma ordem, criamos um propósito que só existe na mente humana. Dedicamos todos os dias do viver à inutilidade do próprio viver. Este, indiferente e frio, vem para todos, tarde ou cedo”. O mais difícil era ouvir ele dizer que “sentia-se como se entrasse em contato profundo com a vida, como se se apercebesse nessa cálida e emudecida dinâmica de acasos e indiferenças”. Dizia que “viver vale tão a pena quanto o seu oposto, em qualquer que seja o caso, você é um nada… um nada mais que um “isso ou aquilo”.

São nessas horas que não sei se entendo o quão intensa é a produção de mentiras e por que elas são tão frequentemente ditas como verdades e aceitas pela multidão que não as questiona. Mas, não duvido que, quiçá, seja mais uma vez o caso de eu estar me enganando – autossabotagem, talvez. Pensar sobre o além, sobre o vazio do agora e sobre as coisas evitadas – os chandalas da mente – pode ser chocante o suficiente para querer nunca mais pensar sobre elas. “Mas ninguém que um dia tenha pensado sobre essas coisas consegue deixar de fazê-lo. Não se permanecer em vida”. Ouvia a isso calado. Que dizer? Diga você!

Ver aquele reboliço todo também era curioso… de que adiantava tudo aquilo? Já estava feito. Nada mais havia que pudesse trazer vida de volta àquele corpo da casa 33. Não à toa Sócrates dizia que “se conhece o sábio pela serenidade com a qual ele encara a morte”. Seria o mesmo que dizer que ali só havia o oposto da sabedoria? Pois a morte era um monstro, uma Caríbdis grega, enfim, um problema monstruoso. Quando, na verdade, nada poderia ser feito. Nada. Não é um problema aquilo que não pode ser resolvido.

Eu ficava em dificuldades e constrangido sempre que tentava lhe falar algo. Ele sempre me interpelava, e chamava-me de tolo por querer usar de jargões para convencê-lo do contrário de suas palavras. Eu tentei algumas vez, mas evidentemente sem efeito e inutilmente. Pesa-me menos na consciência saber que ele estava seguro de seu pensamento. Pensamento esse que me custa perceber em sua inteireza e em profundidade. Por que ele fez isso? Por que ele não quis mais? Porém, o espelho da vida vira-se para mim e me pergunta “por que não?”. Não sei.

Ele não avisou ninguém (ao menos não diretamente). Deixava ir pouco a pouco cada coisa em sua vida, cada planejamento que havia feito, deixava ir um após o outro – até que restasse apenas algo de si em si. Ouviu dizer e depois dizia que “amar é deixar ir”. E, pelo visto, mesmo não acreditando no amor resolveu se ‘amar’. Amou-se profundamente naquele instante de hoje [ou de ontem]. De tanto diluir-ir em si, era, então, coisa alguma.

*  *  *

A chuva engrossou-se naquela periferia moribunda. Os degraus do escadão formavam pequenas cachoeiras; em suas laterais corriam ruidosos regatos que aos poucos viravam rios, e dos telhados desciam fios de água. Era noite no escadão, era ainda mais noite na casa 33. Ficaram na sala, na cozinha, no corredor… em todo lugar, menos no quarto. Não estavam preparados, diziam. Os guarda-chuvas se fechavam e eram postos de canto cada vez que alguém chegava ali ao saber da notícia. A casa enchia-se e esvaziava-se. Um após o outro, pessoa após pessoa entrava para ver se era verdade, pois ninguém acreditou quando soube. Mas contra fatos não há argumentos. Ele estava lá. Um vizinho cabalista até tentou associar o número da casa ao poder que este tem no misticismo. O silêncio engolia suas palavras, uma a uma era devorada.

*  *  *

A polícia chegaria em breve, e junto dela a perícia; provavelmente isolariam o local, tirariam fotos, coletariam materiais que julgassem importantes… seguiriam na indiferença do trabalho de quem veria ali só mais um caso. Seriam estes os mais sensatos? Que aprenderam a encarar a morte com calma e por isso seriam gente sábia? Ou agiam assim porque, de tão comum que era lidar com corpos calados, aprenderam a calar o humano de si e a aceitar que depois do último fôlego vira-se número, inquérito, elemento? […]

Levariam o corpo em breve. O bilhete que estava ao lado dele seguiria sem ser percebido se eu não o tivesse raptado. Provavelmente o funeral ficaria para dali a dois dias, na terça-feira. Como ainda é domingo, e começou a chover forte, apesar dos vizinhos encherem a casa, o caso não repercutiu muito. Os parentes mais distantes recebiam emudecidos a notícia, e irrompiam em choro do outro lado da linha. Que fazer? Nada há que pudesse ser refeito! Ele estava ali.

“Não foi acidente!”, é o que dizia o seu bilhete. Achei melhor ir embora e não mostrá-lo a ninguém. Afinal, acredito que era para mim mesmo que ele escrevera. Na madrugada do sábado, quando nos falamos pela última vez, ao ser perguntado de como ia a vida, ele dizia que “vai tudo bem! Sem acidentes!”. Mais uma pessoa se foi dessa existência caótica. Não sei se hoje ou ontem, mas certo é que alguém se suicidou na casa 33.

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTAS:
I) a estrutura da primeira frase dessa publicação foi inspirada nas primeiras palavras do livro “O estrangeiro“, de Albert Camus.
II) a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.