Houve um tempo em que nossos ancestrais não sabiam da existência do fogo. Isso durou até, suponhamos, a percepção do primeiro raio que, talvez, tenha incendiado alguma árvore seca. O tempo passou. O grande avanço tecnológico aconteceu quando duas pedras em atrito faiscaram-se e o fogo antes obtido pelo raio foi, então, dominado. A princípio, a sua função era a de aquecer o corpo, preparar alimentos e espantar animais, por exemplo. Foi, no entanto, no apogeu de sua criatividade, junto com a descoberta do metal que surgiram as primeiras armas.
Mudanças sociais vinham junto no pacote Humanidade: modificações sociais, defesa de territórios, formação de grupos gradualmente coesos, religião, defesa pessoal e política primitivas… e com tudo isso o aprimoramento do ataque e, portanto, das guerras. Guerra e armas pelo fogo, ou fogo e armas pela guerra?
As guerras a partir do fogo foram inevitáveis? Parece-me que sim. Mas por que inevitáveis? Seria a destruição uma característica latente da nossa espécie? A ausência da dominação do fogo teria garantido a nossa paz? Por que decidimos usar o fogo para outras situações que não de sobrevivência biológica? Mas fazer guerras e construir impérios e sociedades complexas não é parte de nossa evolução biológica?
Houve um tempo – e digamos que foi historicamente bem recente – em que, no nome de alguma alucinação coletiva e poderosa, queimávamos pessoas em fogueiras porque elas diziam aquilo que não queríamos ouvir; queimávamos cidades inteiras porque desejamos suas mulheres e terras; e, ainda mais recentemente, incinerávamos milhões de judeus – isso porque o “Homo arianus” não queria se contaminar. Repito, então, a pergunta: seria a destruição uma característica ontogênica latente da nossa espécie? E quanto ao fogo; foi o seu domínio que potencializou essa latência? Será?
O fogo não é a causa da nossa humanização – ao menos, não sozinho. Isso porque não há nada que isoladamente explique o nosso processo de desanimalização. Fomos, por um tempo bastante extenso, apenas Homo sapiens – bichos que comiam, dormiam e viviam como bichos. Hoje, por mais que pensemos o contrário, isso ainda acontece, porém sem que tenhamos [ou aceitemos] a ideia de que somos animais. Tiramos [ou escondemos] a nossa animalidade ao achar que não a podemos possuir, somos especiais demais para viver como meros bichos. Alguns sapiens acreditam com toda a alma que somos a criação máxima do gerador do universo; logo, seria insano supor um estado animalesco, não cabe a nós o baixo cargo de animal insignificante. Ainda que essa seja uma condição real, vigente e inalienável do Homo sapiens. O fogo até participou desse processo, mas aliado a outras características.
A capacidade criativa humana que funciona ao acaso e com caminhos não lineares certamente que, além de tirar o nosso animalismo, deu-nos – a partir do fogo – maneiras bem efetivas de praticar ações surpreendentes. Se o dito criador do universo existisse, sequer ele seria capaz de prever tamanha potência desempenhada por uma espécie tão pobre em aparatos biológicos inatos de defesa. O criador teria sido traído pela sua criação. Haveria uma guerra, com direito a muito fogo. Nela, certamente o Todo Poderoso seria queimado.
Tamanho é o sentido do fogo na nossa construção simbólica que, para além de nos servir como ferramenta física, ele serve-nos também como ferramenta aplicada à nossa psique – às vezes na forma de uma ameaça que até hoje serve de coerção para certos grupos. Considerando a importância da manipulação do fogo, e tudo o que ele garantiu de benefício ao ser humano, o paraíso das religiões deveria ser feito de chamas, muito fogo, labaredas acessas que lembrariam e homenageariam à nossa grandeza. Pelo visto, não foi isso que aconteceu. O extremo oposto do paraíso e de suas promessas de paz é que recebeu chamas e ardores capazes de fazer ranger os dentes dos que por serem humanamente desprezíveis seriam destinados ao fogo eterno. Na nossa história, o fogo é ora luz e sabedoria, ora terror e tremor. Mas no final das contas, onde há fogo há potencial destruição. Não fomos feitos do barro e do sopro, como se imaginam – mas talvez a mitologia poderia substituir esse barro por fogo – aí sim o sopro faria sentido, uma vez que este teria aumentado a labareda humana; labareda esta que na guerra nos tornou humanizados. Seria isto o ser humano? Vai depender do ponto de vista.
Concordo com o historiador Geoffrey Blainey o qual diz que, “ao intensificar-se, a guerra tornou-se um espelho na natureza humana. O que o ser humano tinha de melhor e de pior vinha à tona, mas o pior ficava nitidamente exposto“. Um dia, lá atrás na História, dominamos o fogo; depois ele nos dominou – hoje descobrimos novas maneiras de produzir armas, incluindo novas armas; ainda, descobrimos novas formas de lutar além daquelas guerras – por outro lado, inventamos novas guerras. E suspeito de que a tecnologia moderna que hoje orgulhosamente dizemos dominar, há muito já nos tornou reféns – reféns de nossa própria ganância.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
Escrito em 11 de julho de 2019.
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NOTA: As imagens usadas para compor a capa dessa publicação foram obtidas na internet: fogo I, fogo II, pintura rupestre.