Um ‘teste’ de si
Eu te proponho um teste… Olhe bem para você nesse momento; também, olhe para a sua história de vida. Agora, olhe para os seus desejos mais profundos e não realizados – pense numa “vida inteira que poderia ter sido e que não foi“.
Então, feito isso, eu te pergunto: de que, nessa coisa toda, você não gosta? Entre o que mencionei, o que te causa mais repulsão em você mesmx? Dito em outras palavras: o que, na sua vida, faz você se sentir uma pessoa não realizada, frustrada e, às vezes, com raiva de si mesmx? O que você mudaria em si, se pudesse?
E aqui vem o teste: tente se observar e pense se algumas dessas coisas também estão presentes nas pessoas às quais você trata mal. Observe se aquilo que você repudia em outro ser humano não está também dentro de suas próprias repulsões de si mesmx¹. Nessa hora, vale se questionar [com responsabilidade] sobre o que dizia Carl Jung: “o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma melhor compreensão de nós mesmos.”
[(¹) OBS: leia a nota de esclarecimento no final dessa publicação.)
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
Escrito dia 26 de junho de 2019.
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#VocêJáParouParaPensar?
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Reflexão teórica
A reflexão que proponho é a de interpretarmos o outro aspecto embutido no próprio teste. Que diz respeito ao fato de que eu não considero adequada a afirmação de que certo comportamento que apresentamos está diretamente relacionado a algo que mantemos reprimido em nós – como propõem alguns psicanalistas, sobretudo freudianos. Refiro a algo que nada tem a ver com isso. E é importante que a leitura desse teste não fortaleça esse estereótipo no imaginário coletivo (no caso, no coletivo de leitores desse humilde blog). Afirmar como rígida e, talvez, exclusiva a relação entre o desejo reprimido e o comportamento revelado levaria ao erro – vigente no senso comum, mas não apenas nele – de que, por exemplo, todo homofóbico é um “gay” enrustido. Isso, reitero, é uma má interpretação. Embora seja uma realidade que pessoas criadas sobre regimes homofóbicos apresentem traços de homofobia como forma de defesa e como uma possibilidade de se manter naquele meio social sem precisar entrar em contato direto com sua sexualidade (ou orientação sexual), isso não deve ser generalizado. Os textos linkados são incompletos e simplórios, e abordam testes realizados com um público avaliado que pouco representa a realidade social do Brasil; é preciso cautela na hora de ler uma notícia e torná-la uma base de argumentação.
Infelizmente, e recentemente, uma professora da disciplina “Introdução à Psicanálise I – Freud” na Universidade de São Paulo afirmou essas mesmas barbaridades quando foi questionada por um aluno se “todo homofóbico é um ‘gay’ enrustido?“. Eu estava nessa aula, e afirmo que ela disse “Sim!“… e ela seguiu com explicações que, somadas à legitimidade do discurso dada a uma professora da USP, possivelmente perpetrou essa ideia no imaginário coletivo. Dessa vez dirão que “uma professora da USP disse…” e sustentarão – novamente – uma interpretação que é, além de perigosa e injusta, errada.
Por isso, cuidado com o que você ouve e com o que você lê! Homofóbicos devem ser responsabilizados por suas atitudes violentas, e não há uma ligação unívoca entre “gay” enrustido e homofobia. Isso serviria mais de um mascaramento do homofóbico que de qualquer outra coisa. Então, repito, muito cuidado quando alguém propaga por aí que “estudo diz que…“, ou “a ciência afirma que…“. Considero, por exemplo, um grande descuido conceitual afirmar que o ignóbil Jair M. Bolsonaro é um “gay” enrustido pelo fato dele não conseguir falar mais de uma frase sem envolver algum componente erótico no contexto. A psicanálise tem outras explicações mais úteis – caso desejem – para explicar esse comportamento – e não é dizendo que o Coiso é gay. A propósito, esse ser humano desprovido de inteligência é mau-caráter, agressivo, misógino, homofóbico, racista, …, etc. Não cabe julgá-lo por reprimido – o que ele menos é reprimido. Ele é estúpido mesmo.
Nesse mesmo sentido discursivo, vale a pena pontuar que um religioso intolerante não deve ser traduzido como alguém que “do fundo da alma” é um ateu, mas que se defende de uma possível repressão do meio social em que vive por não poder expor seu ateísmo; da mesma forma, um ateu agressivo não é – de forma alguma – um ser humano que reluta em “aceitar Jesus“. Homens que agridem mulheres seriam, por assim dizer, algum tipo de animal que não souberam lidar muito bem com sua masculinidade porque em si vibra uma feminilidade reprimida? Bom, não duvide de que há quem diga que sim…
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Portanto, quando no teste eu digo para você pensar em algo presente em outras pessoas mas que te incomoda e sugiro que isso possa falar algo sobre você, estou dialogando a respeito de como se reconhecer em seus próprios comportamentos. Quando lanço as perguntas “O que, na sua vida, faz você se sentir uma pessoa não realizada, frustrada e, às vezes, com raiva de si mesmx? O que você mudaria em si, se pudesse?” estou, na verdade, trabalhando com questões conscientes de cada pessoa, o contrário de um sentimento recalcado (na linguagem freudiana), que é inconsciente – não percebido diretamente pelo sujeito.
Suspeito de que o que mais nos irrita no outro, na verdade, fala de nós mesmxs, porque a culpabilização é sempre um analgésico que anda em nossos bolsos. Olhar aquilo que nos desagrada e dizer que [somente] a outra pessoa o pratica é mais fácil do que questionar – e, sobretudo, mudar – o nosso comportamento. Pessoas desmarcam compromissos, são corruptas, mentem, são aproveitadoras, interesseiras? Sim! Isso tudo e muito, muito mais. Contudo, quem somos nós se não pessoas? E quanto de nossa atenção está voltada para nossos atos e para nossa participação no todo social? Ter ideias perfeitas sobre humanos perfeitos é algo atraente – mas se elas não são postas em práticas servem apenas de uma utopia que alimenta ilusões coletivizadas. O que transforma um corpo social são ações, práticas. Ou, para finalizar, como disse o autor de Homo Deus (Yuval Noah Harari), “ideias só mudam o mundo quando mudam o nosso comportamento“. #ficaadica.
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Créditos da imagem: A imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtidas aqui.