Um surto, um desalento, um mal presságio?
Um desaforo macio, uma metáfora realista em si?
Um tom deslocado, um ar debochado?
Não! Nada disso.
Aconteceu que, na verdade, foi só uma observação desavisada:
o poeta fugiu às ruas enquanto o biólogo dormia em casa.

E viu como uma espessa nuvem,
densa, mas tão densa que parecia uma só coisa,
lembrava mesmo uma nuvem escura
que anunciava uma tempestade,
e que navegava como uma massa amorfa,
numa alienação que modelava o jogo;
o jogo do existir.

Ao se chegar mais perto, notava-se-lhes os detalhes:
eram pontos; pontos mecânicos,
que seguiam uma programação inata,
uma conduta implícita,
uma norma não dita,
um mandar sem chefe,
um estar estando,
que se movia andando…

O conjunto era insanamente são,
cada qual ali fazia coisas sempre do mesmo modo,
cortava seu ganha pão, carregava seu peso,
levava sua cruz;
cruz inventada, peso interminável sobre as costas, pão amassado…
mas talvez não só isso;
era todo o dia a mesma coisa,
e as mesmas coisas todos os dias…
tudo tão igual que pareciam nem perceber a rotina:
já que a consciência de algo se dá no contraste,
o que não destoa não soa.

Nunca se pesou uma consciência,
mas supõe-se que aquelas não eram leves;
isso por considerar seus gestos sofridos e autômatos,
os olhos vidrados no nada, um semblante paralisado,
frio, duro, seco, choroso;
uma busca infeliz pela felicidade,
um prender-se à liberdade;
é como se a consciência, de tão pesada, esmagasse o interesse pela vida,
como se, de tão esmagador, o fardo confundisse a luz com o fogo,
e este queimasse o prazer de ser e de agir.

Aquela massa de pontos estava ali;
dela saiam filas e mais filas,
um atrás do outro os pontos seguiam seus caminhos,
como se já nascessem sabendo o que haviam de fazer.

Tudo era tão bem coordenado,
numa alienação tão introjetada
e numa sistemática e rítmica execução,
que se fosse dado ao poeta dizer para o mundo o que viam os seus olhos,
pouca gente nele acreditaria.

Era um combinado silencioso;
sim, estavam desde o nascimento ajustadas ao que seguir;
uns poucos pontos seriam reis e rainhas,
alguns outros cuidariam da ordem:
os primeiros eram os que oprimiam;
os últimos, os que reprimiam;
e haviam ainda muitos outros pontos,
numerosos a perder de vista;
estes – que movimentavam a roda do tempo,
que faziam girar as engrenagens da história –
construíam castelos mas nunca se sentavam no trono;
cavavam poços, mas morriam de sede;
criavam coisas esplêndidas, mas como se não bastasse delas não usar,
eram ainda destituídos, destruídos e substituídos,
numa facilidade assustadora.

Eram esses pontos iguais no viver, semelhantes no existir,
únicos no sofrer;
sofredores que dia após dia cuidavam de tudo,
cortavam, carregavam, preparavam a plantação,
construíam a história;
mas que mesmo assim não seriam lembrados.

Nunca reclamavam seus direitos [?],
acreditavam mesmo que era o que era porque daquela forma estava [?];
sabiam exatamente seus lugares [?],
obedeciam tudo de forma tão precisa e preciosa que
jamais alguém se rebelou [?].

Será que, se pudessem, fariam algo?
Não fizeram?
Será que, se falassem, gritariam por socorro?
Não gritaram?
Talvez, quem sabe, se lhes fosse dado o pensar em si, pensariam?
Pensaram!
Desejariam, então, viver uma vida menos do todo e mais de si?
Qual?
Se pudessem fugir do destino fatal de quem só obedece, fugiriam?
Como?
Será que louca é só a poesia?
Fato!
Será?

Quando de algum susto, todas se espantavam;
corriam num desespero que durava só alguns segundos na história;
a vantagem de uma memória de curto prazo é
esquecer o susto e seguir sempre no chamado destino,
quem não se lembra não se incomoda,
quem não se incomoda não sabe se deseja mudar de situação;
porém, a inanição não é um desejo, é um mecanismo sutil,
é abusivo,
capcioso,
paciente,
laborioso,
lento e gradual,
é como que sem lembranças.

E este é o ponto: essa massa existe por amnésia;
sempre que algo lhes causa transtorno, esse algo logo “desaparece”,
logo é substituído, portanto, logo é esquecido;
assim, quem nela nasce para carregar pedra não ostenta ouro
– não sem revolução;
Mas que revolução, se no esquecimento é aceito que tudo se repita?
e às vezes essa tal aceitação é mais forte que a revolta que queima o âmago.

Compra-se o conforto com desconforto,
paga-se a paz com guerras;
luta-se contra a ansiedade com esperas.

Ordem?
Progresso?
Disciplina?
Repetição?
Estamento?
Leseira?
Sociedade?
Divindade?

Submissão?

Elas são apenas pontos [?].
Vai saber!
Quanto maior o pé que as pisa,
maior o número dizimado pelo sapato do acaso;
e a cada pisada, um susto na História.

Quando mais de perto se olhava, com mais definição se via.
Eram minúsculas diante da imensidão,
verdadeiros seres insignificantes,
diminutas em tudo, até no pensar;
sua significância se dava apenas no tamanho dos aglomerados,
que se espalhavam por todo o Globo,
chegavam a toda parte.
Como?

Existiam em tão grande número
só porque não podiam ser indivíduos;
conforme mais perto, mais nítido,
agora quase tudo fazia sentido.
Se igualavam, se rendiam ao modelo;
quebravam seus espelhos,
não se viam,
não se sentiam mais.

Quem se vê, se sente;
quem se sente, se compara;
quem se compara, se mede;
quem se mede, quer valor.

Um modelo Uno serve de consolo à tristeza;
ajuda a suportar a vida em bando;
torna aceito o escárnio;
transforma o sofrimento em glória,
e a humilhação em vitória.
Quanto menos em si, mais no grupo:
eis o fundamento!

E era isso que parecia aquela nuvem aos olhos do poeta;
era um emaranhado tão denso e fechado que
pensou elle que se tornava um corpo suspenso,
que via tudo lá de cima,
como quem vê o céu aqui debaixo:
distante, homogêneo;
pois tudo era ponto.
Nuvem de pontos ao acaso.

Mas essa massa em movimento, que era?
Não era gente;
Que era?
Não eram pessoas.
Então o quê?
Eram insetos;
eram formigas.

Elle tivera certeza de que se tratava de uma sociedade rígida;
depois, aceitou até que fossem formigas…
formigas que trafegavam sem porquê,
totalmente estúpidas por serem tão obedientes;
que estavam perdendo tempo em fazer tudo tão igual,
em repetir o mesmo a vida toda;

um desperdício da existência,
numa vida que se gastava em um silêncio autorizado,
todas as horas do dia,
todos os dias da semana,
todas as semanas dos meses
e todos os meses do ano.

Sofria-se não gratuitamente,
pagavam tudo aquilo com a vida;
mas uma vida que mais parecia morte;
ainda assim, diziam ser sorte.

Gritando na rua, o poeta dizia que as formigas eram inertes,
subservientes,
alienadas.

De fato, pensou muito que estavam ali como que obrigadas,
embora não soubesse ou,
ainda que fosse sabido,
preferiam acreditar que era por bem, não por mal:
eis as garras da moral.

Que buscavam?
Felicidade? Formigas, felicidade?
Pelo que acordavam todos os dias?
Que projetos para o futuro poderia justificar
– num frenesi atormentado –
tanto trabalho às vezes insuportável?
Que tanto se deseja para além do que se pode precisar?
Oh! Rainha alada das formigas,
Por que ninguém faz nada?
Ninguém?

Às vezes é tentador crer que elas,
as formigas selecionadas para serem um conjunto,
coordenadas invariavelmente pelo ser e pelo ambiente,
autônomas em um só fazer,
desejosas num só prazer, quiçá o de viver,
são seres de grupo,
de “rebanho”,
de louvores obrigatórios.

Pensando aqui… até diria o poeta que essas criaturas seriam mesmo só tudo isso…
mas não só elas…

 

*  *  *

vjppp

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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