#09 – o disfarce e o valor do preconceito. Na construção social, a própria palavra “valor” traz consigo uma conotação positiva se usada de maneira imediata, quando na verdade um valor pode assumir qualquer valor. O diferencial está em que meio ele se encontra, em que terra foi plantado e que nutrientes o satisfaz. A depender do que é mais propagado e aceito, o valor pode florescer ao ponto de ser considerado algo bom ou ruim, desejável ou asqueroso. E, indubitavelmente, nós temos participação direta nessa dinâmica de estabelecimento de medidas e plantios – mas nem sempre essa participação é consciente. É também como se existisse uma régua sobre a qual deslizam o positivo e o negativo. Seja como for, de forma determinante ou sob influências, é por nossa incapacidade explícita de nos posicionarmos diante de uma fala preconceituosa que o preconceito em si acrescenta mais um centímetro na régua da desigualdade social. É por não estudarmos o suficiente sobre identidade de gênero que saímos falando que “homem é homem, mulher é mulher“; por não conhecer a respeito de orientação sexual – e por uma religiosidade tóxica e um pensamento discriminatório – diz-se que “o certo é homem com mulher, o resto é gambiarra“. Sem dizer que é por carência de respeito que consideramos errado tudo que não reflete a nossa imagem no espelho do egocentrismo. São certas atitudes aparentemente sem importância que deslocam os valores sobre a régua da sociedade. Dizer a uma mulher que ela é incapaz de tomar as próprias decisões sobre o próprio corpo pode soar autoritário demais, por isso preferem de forma disfarçada dizer que “a roupa dela está muito ‘colada’, e isso chamará a atenção dos homens“. Dizer que não suporta a fala de um nordestino não é muito polido e educado, por isso dizem que “eles têm um jeito engraçado de falar“; da mesma forma, não é politicamente correto dizer por aí que os LGBTQ+ são errados e que não deveriam compôr a sociedade, uma vez que (para seus acusadores) são Homo sapiens defeituosos e contaminantes; assim, é mais “adequado” dizer que “respeito todas as pessoas, cada uma faz o que achar melhor, mas não concordo com o estilo de vida delas. Deus fez macho e fêmea, não sou eu quem estou dizendo, está na Bíblia“. Observa-se uma tendência ao disfarce, num movimento social que enruste comportamentos e atitudes, cobrindo-os com uma camada espessa de intolerância e conservadorismo. O valor de um preconceito pode ser paradoxal: é negativo, prejudicial e destrutivo para a vítima; mas pode, além de soar apenas como uma “liberdade de expressão“, servir de nivelador social e de muros que separam cores, gêneros, crenças e classes sociais: de um lado “nós”, do outro “eles”; “aos amigos, tudo; ao demais, a lei“, ou, no caso, as piadas e a discriminação. Quem se apropria do preconceito às vezes tenta disfarçá-lo, mas sempre e de forma insistente trabalham para fixar seus valores ao longo de uma régua social, busca-se manter bem demarcado até aonde a parte oprimida pode deslizar suas ideias e até aonde jamais poderão. É uma fixação de valores que ocorre dia após dia, sem pausas e também sem escrúpulos. O disfarce está justamente na fantasia de que foi só uma brincadeira, de que não se deve levar tudo tão a sério ou de que não existe racismo no Brasil. Mas também é disfarce quando se usa versos de um livro religioso para, em vez de assumir a própria maldade, culpar um Deus; é disfarce quando se acusa a criação familiar e toma-se por válido o conservadorismo, como se nada mais pudesse ser feito – é a síndrome de Gabriela: eu nasci assim, vou morrer assim. Disfarça-se ao transferir a culpa para a Cultura, para a Sociedade e afins… Afinal, a culpa ainda é uma das melhores formas de absolvições já inventadas: ao se inventar o culpado, ali nasceu também o inocente. Para disfarçar um lado, mostra-se o outro; como num jogo de valores.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: A imagem utilizada para compôr essa publicação foi obtida aqui.