Cada direcionamento que damos aos nossos gostos, às nossas eventuais escolhas e à maneira pela qual costumamos resolver a maioria de nossos problemas está diretamente relacionado à nossa concepção de verdade. O uso e a expressividade do corpo; a crença e seus rituais; a possível escolha de um parceiro ou de uma parceira; o que comemos e bebemos; onde, quando e como comemos e bebemos; os lugares que frequentamos; as amizades que temos; as músicas que ouvimos; a profissão que possivelmente escolhemos; o partido político que elegemos; nossos valores e princípios; e tudo mais quanto você puder aqui elencar é fruto daquilo que consideramos como a nossa verdade dentro de um possível universo de verdades significantes.

Pode-se dizer que o modo como esse texto será lido e assimilado por você depende de que verdade se utilizará para interpretar esses códigos – às vezes, e suspeito de que não dificilmente, poderá acontecer de se lançar mão de mais de uma verdade. Quando temos a convicção de que a nossa verdade é a verdade geral, ou a verdade fundamental, ou seja, a verdade geradora de outras verdades, tendemos a direcionar e guiar cada uma de nossas atitudes como se, a partir dessa tal verdade, todos os traçados de nossos planos fizessem não apenas sentido, mas que fossem o próprio sentido em si.

Para exemplificar, um cristão, que tem a verdade cristã enquanto motivo de sua crença, não conseguiria tomar as mesmas decisões que um ateu possivelmente tomaria. E obviamente que não falo sobre escolhas triviais, que caberiam em qualquer escopo de crença ou ideologia. Falo, a grosso modo, de todo o conjunto de símbolos e de sentidos atribuídos, por exemplo, ao sofrimento e ao pós-morte. Entender que no céu existe uma divindade que pode resolver os seus problemas é uma razão mais que suficiente para modificar a maneira pela qual a sua vida pessoal é pensada, planejada e vivida; a própria forma de encarar o sofrimento varia entre um cristão e um ateu. Assim, possivelmente, um ateu não deixaria de tomar uma determinada decisão em sua vida simplesmente porque alguém ficaria ressentido por não se ter feito o que seria esperado por um conjunto de crenças religiosas. Se por um lado muitos cristãos não abandonariam um emprego opressor, um casamento insatisfatório ou um relacionamento abusivo baseado na esperança de uma redenção divina, por outro, um ateu preferiria julgar a situação mais pela lógica e pelas circunstâncias objetivas. Isso não significa dizer que ateus tendem a fazer escolhas melhores que cristãos, apenas diz que aquelas escolhas acontecem por princípios diferentes, e que ambas se baseiam em verdades específicas de cada contexto.

Mas não são apenas em questões religiosas que as verdades têm potenciais. Um vegano que pretende se alimentar e que tem por verdade o fato de que animais sofrem, de que a indústria alimentícia explora para além do que ingenuamente poderia ser julgado como o necessário para a sobrevivência e, além disso, que acredita ser um ato de crueldade qualquer atitude das que observamos na criação e reprodução animal para a alimentação humana, terá escolhas totalmente diferentes de uma pessoa que acredita na verdade de que os animais foram “deixados” para nos servirem. A escolha entre um bife bovino ao molho madeira e uma porção de grão de bico com molho de castanhas pode envolver mais elementos que apenas o “gosto” pela comida. São possivelmente as verdades que direcionam inclusive o que entendemos por gosto, costumes e cultura.

Da mesma forma, ou num mesmo sentido, um traficante de corpos humanos que movimenta um mercado ilegal como o da prostituição infantojuvenil tem verdades que possivelmente soem diferente daquelas das pessoas que trabalham dedicando suas vidas ao cuidado de jovens e crianças em situação de vulnerabilidade. Entre oferecer abrigo, alimento e proteção a uma criança e introduzi-las numa rede de prostituição, possivelmente, e muito possivelmente, existem valores atribuídos ao ser humano em questão; tais valores são oriundos, entre outras coisas, mas majoritariamente, de verdades concebidas e geradoras de comportamentos diferentes.

Os seres envolvidos são os mesmos se falarmos entre ateus e cristãos: são Homo sapiens – e eles querem nada muito além de encontrar uma maneira simbólica de dar sentido às suas vidas. Veganos e não-veganos são igualmente indivíduos que podem compor uma mesma sociedade; e todos estão olhando para a mesma questão no momento imediatamente anterior à tomada de decisão sobre o que comer: o gosto, o desejo, o animal. Da mesma forma, traficantes de corpos humanos e defensores dos direitos de jovens e de crianças em situação de vulnerabilidade olham com bastante atenção para um mesmo ponto: os próprios jovens e crianças. Mas fica um questionamento: o que muda nisso tudo?

Uma possível explicação é que o que muda de uma perspectiva para outra é a verdade tomada por verdadeira e, portanto, fundadora de um conjunto de crenças, valores, permissividades e proibições. Independentemente de em qualquer desses casos se supor um deslocamento da verdade, ou seja, o posicionamento de uma verdade em cada conjunto de crenças, ela atua e gera transformações; e, atuando enquanto transformante, gera relações sociais que modificam não apenas o universo significacional do indivíduo que se crê possuidor dessa ou daquela verdade, como também daqueles que sofrem dos efeitos secundários da verdade atuante.

Ainda que se diga que os chefes de quadrilhas responsáveis pelo tráfico humano não tenham contato direto com ele, e, ainda, que possuem filhos aos quais tratem bem, supondo-se, então, que a verdade deste diz respeito ao lucro obtido e não ao tráfico em si, o que determina o efeito final é o fato de “traficar crianças e jovens” ser um componente que pertence ao conjunto de verdades possíveis do traficante. Ou será que alguém que trabalha com cuidados de jovens em situação de vulnerabilidade consentiria nessa atitude?

Em todo caso, observe e verá que por trás de qualquer decisão existe, de uma forma mais nítida ou de modo mais opaco, um conjunto de verdades que apoia e tenta dar sentido aquilo que se é praticado. Pensar em países ocidentais cristãos sobre a questão da população negra, das mulheres e da comunidade LGBTQI+ são também outras vias pelas quais podemos analisar o quanto as verdades potencialmente direcionam certos mitos e fortalecem diferentes comportamentos. Em um países estruturalmente racista – por exemplo, o Brasil e os EUA – cuja verdade é historicamente preconceituosa e escravista, o resultado tem sido a permanente violência infligida sobre a população negra. É como se existisse um consenso “silencioso” que legitimasse uma falsa verdade de que negros são inferiores aos brancos e que, portanto, as medidas que visam melhorias sociais e o bem-estar humano não atravessasse a população negra, pois não é contemplado como verdadeiro o fato de que pessoas negras também possuem subjetividade e que devem possuir direitos iguais. Além disso, ideias como o mito da Democracia Racial e a afirmação de que “somos todos iguais” constituem uma falácia socialmente construída e que legitima uma verdade altamente destrutiva. Existe racismo no Brasil, a violência contra os negros e negras é crescente nos EUA, o preconceito emana de discursos midiáticos e permeia ambas sociedades; precisa-se urgentemente entender e alterar esse cenário que persiste por séculos de exploração ora velada, ora estruturada.

A condição da mulher no mundo ocidental pode até ter sido modificada nas últimas décadas, sobretudo se comparada ao oriente, entretanto ainda predomina uma verdade danosa de que as elas são o “sexo frágil”, que merecem ganhar menos e que devem servir aos prazeres sexuais dos homens. Possivelmente, se essa verdade fosse substituída pela de que devemos possuir uma equidade de direitos e que o respeito não é um diferencial, mas uma condição mínima para a vida em comunidade, os comportamentos seriam necessariamente alterados. Uma verdade não atua apenas no campo da conceituação, ela exerce um impacto sobretudo na prática, no comportamento efetivo, naquilo que se executa.

Não é preciso dizer que o estereótipo acerca da comunidade LGBTQI+ é a de que, perante o conjunto social, ela é feita de pessoas “anormais” e “desviantes”. Se por um lado há quem diga que estou generalizando, por outro lado eu diria que, independente de uma pessoa ou outra se dizer aliada à causa LGBTQI+, as estatísticas mostram dia após dia, friamente, que países ocidentais, com destaque para o Brasil, ainda lideram o ranking de violência contra não-heterossexuais, principalmente, contra pessoas transexuais. O número de indivíduos expulsos de casa ou que se suicidam simplesmente por terem se assumido de forma não-heterossexual é um dado real; é pode ser fruto de uma verdade socialmente construída, como um projeto silenciosa e inconscientemente executado.

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Considerando tais contextos, é possível inferir que cada indivíduo tende a se movimentar sobre o tecido social a partir de concepções que pertencem ao seu universo subjetivo. Todo um conjunto de crenças, hábitos e costumes antecedem o nascimento de quem quer que seja; uma formação cultural que se estende ao longo de gerações atua por mecanismos diversos, construindo certos modus operandi das pessoas que a ela pertencem; aquilo que constitui o sujeito diz respeito não somente à soma de seus aprendizados imediatos, mas os excede, pois se encontra presente em uma rede relacional formada de significados e significantes que, no contato entre uma e outra subjetividade, constrói o ser humano.

Verdades absolutas encontram amparo apenas no dogmatismo, que por sua vez as utilizam como premissas para um conjunto de comportamentos que podem tornar-se religiosos. Abandonar uma verdade – sobretudo as dogmatizadas – exige uma abertura epistemológica de sentidos. A menos que não se permita um contato mais amplo com questões que fogem daquelas previamente apresentadas ao longo da formação pessoal e que verdades originais nunca sejam postas à prova por outras possibilidades argumentativas, o universo simbólico tende a se manter construído tal como pretendem essas verdades.

Em todo caso, ainda que mudemos nossos conceitos, que alteremos nossas crenças (ou nossa percepção da crença) e que exista o compromisso de entender a diferença a partir da própria diferença e não a partir de um único ponto de vista, estaremos pautados em alguma ideia de verdade. Ela possivelmente ainda seguirá direcionando o nosso senso e o nosso agir no mundo.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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