Essa noite ele estava lá, no chão do banheiro.
Era um estar quase que não estando;
não necessariamente um não-querer-estar,
mas como que querendo sem querer que aquilo passasse.
Apenas lá estava sendo
e prestes a deixar de ser.
Era ele um inseto,
tombado contra a sua vontade,
anulado apesar de sua potência animal;
estava lá, virado de abdômen para cima,
de pernas parcialmente imóveis,
mas totalmente desordenadas
e provavelmente cansadas;
cansadas de se mexerem em vão.
Ali, ao lado do vaso sanitário
– na penumbra de um cômodo silencioso –
estava aquela quase barata;
parte dela estava viva, parte era morta;
ontem, cores âmbar fulgurantes,
essa noite, uma capa de quitina fosca;
antes, era ela um corpo ágil e rastejante,
com uma vida sorrateira e silenciosa,
agora, nada mais que um semi-existir silencioso;
era algo que clamava por haver-se tornado uma presa da sorrateira morte.
Pernas que não cessavam de buscar por algo,
asas atarraxadas ao chão de cerâmica fria;
as antenas que outrora captavam os sinais do ambiente
naquele momento o máximo que faziam, e que podiam fazer, era tentar;
tentar, em movimentos letárgicos,
encontrar algo pelo que sentir;
algo que possa ser e, assim, ter sentido.
Tarde demais!
A barata estava ali,
na sombra da vida,
à luz da morte,
de pernas para cima e de asas para baixo;
tudo que antes era, então se desmanchava no correr fluido e penetrante do tempo
que escapara de seu entendimento;
se antes passava por tudo sem ser notada,
dessa vez era eu que a percebia.
Apenas uma coisa na vida daquele inseto não deixara de ser,
em apenas um lugar nunca deixou de estar;
era ainda um inseto insignificante aos olhos de humanos sem significado;
estava ainda no chão, rebaixada e reservada ao descaso;
descaso esse que, apesar de tudo, foi revelado, resvalado,
posto à luz do conhecimento alheio,
exposta em sua total e fragilizada despedida.
Antes que o padecimento tornasse aquela barata uma não-vida,
e para além de sua ida,
eu a vi.
Mas, perguntei-me, por que eu a vi?
E, quando a vi, por que a percebi?
E, quando a percebi, por que pensei que ela estivesse pensando?
Por que senti que ela pudesse estar sentindo?
Seria, talvez, o caso de com ela eu me identificar tanto,
seria o fenômeno da verossimilhança,
seria a identificação do observador com a coisa observada
que me fez ver na barata não ela mesma,
não a um inseto,
mas a mim em seu lugar?
Será que eu via a minha existência em seu deixar de existir?
Onde começa a barata e onde termina o humano?
Quem era quem?
Quem é quem?
Quem sou eu?
Posso não saber nada disso,
e talvez eu nem saiba aonde estou;
mas tenho certeza de que, essa noite, aquele inseto estava, por acaso,
lá no chão do banheiro.
E ao percebê-lo eu me percebi.
* * *
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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