Um dia desses, pela manhã, acordei mas permaneci deitado…
Paralisado, não quis – ou não pude querer – me levantar…
estava tudo dolorosamente confortável…
sempre é mais confortável a dor atual e certa que a inesperada e desconhecida
pois, além de ser dor, não sabemos medir se ela será ainda mais, ou, que seja, menos…
a atual, no entanto, é conhecida da gente…
Assusta! Mas sabemos como ela trabalha… sabemos onde ela aperta…
Mesmo assim, naquela manhã, quase que me levantei…
Contudo, num movimento calmo-inconsciente, resolvi recuar e olhar para os objetos ao meu redor…
Que era aquilo tudo?
Que houve?
Os livros estavam ali – belos, diversos, cheios de conteúdo;
mas parados, inertes e sem vida por não estarem sendo vividos…
havia um tempo que só recebiam pó e, às vezes, espantos e elogios: “Que lindos! Você já leu todos??”
Os quadros na parede eram cheios de vida em sua mensagem de conjunto trino; e sem nada dizer seguiam repetindo a cena: relembrando a quem os vê o momento em que as fotos foram tiradas e ressignificando os fatos, assim, a cada pixel ali dentro… a imagem morta também era viva… coisa viva dentro de coisa morta, coisa morta querendo coisa viva… um oroboro imagético…
Os cubos mágicos sem mágica alguma esperavam apenas para fazer alguém sentir que tem cérebro, quiçá porque os deixou como quando comprados: com cada face de uma cor; mas era como se existisse uma identificação entre o montado e quem o monta – com uma diferença importante: para apenas um deles existiam algoritmos que garantissem o resultado esperado… para o outro, o acaso…
Mais objetos… mais devaneios… insanos delírios racionais…
Cadeiras sem ninguém… como em certos depósitos em que elas servem de repouso aos fantasmas…
No chão, um tapete esticado; posto para decorar o ambiente, pois sua beleza traduz, entre outras coisas, o desejo de equilíbrio, harmonia e satisfação – mas também o de exibicionismo e de superioridade;
Não sei porque, mas me ocorreu pensar que algumas pessoas até fazem isso na vida real, e usam “coisas” porque isso as faz se sentir mais confortáveis e, para algumas e com algumas, tudo bem se essas “coisas” forem pessoas… e que sejam (enfim – há que se dizer agora ou nunca mais) pisadas de vez em quando… é a superioridade exibida…
Puffs alinhados, porém cumprindo apenas o papel do ego insatisfeito… uma decoração… uma decoração que clama por reconhecimentos e elogios!
Por trás de mim, estava ela, pontualmente às 5:45, a claridade… que apenas dizia sem dizer palavra alguma: “você está pronto, jovem primata, para mais um dia que se inicia?”
Eu não queria muito fazer aquilo, mas retruquei a inquisição: “Pronto para quê? Para a mesma coisa? Ou teremos novidades? Se sim, que sejam menos piores e, se possível, agradáveis”… mas é tolice toda previsão desesperada; é supersticiosa qualquer que seja a esperança de mentalizar achando que isso mudará o dia… ou mudara? Ou Mudará?
Muda?
Foi quando virei para a esquerda e olhei para o ventilador e para a cortina na janela…
Ele foi ligado há quase sete horas e foi posto a ventilar e a girar seus ininterruptos cento e oitenta graus a noite inteira; aquela vida inteira;
girava para a esquerda, voltava para a direita,
a noite inteira… esquerda, direita…
Nesse movimento ele balançava a cortina;
ela ora se bagunçava, ora voltava ao normal,
e assim ia a noite inteira… bagunça, normalidade…
a vida inteira…
Pensei se talvez algumas coisas da vida fossem assim…
os pensamentos, talvez…
Não tudo, nem todos, mas também algumas coisas que vivi…
Estavam sempre ali,
umas paradas, outras em movimento…
mas a vida inteira?
Umas que se diziam, outras que esperavam para serem ditas,
mas tudo ali, mecanicamente livre,
livremente mecanizado…
coordenadamente perdida numa existência caótica que era rotina…
Mas meu corpo cansou e eu tive de me levantar…
a observação teve de cessar;
E levantei-me olhando o giro do ventilador…
E estou me levantando… ainda… mas também girando… por enquanto…
Preciso mexer nessa casa aqui dentro,
custa tentar mudar as coisas,
cansei de vê-las iguais… iguais ao que nunca vi antes…
Penso mesmo que faltam muitos objetos novos, ou não empoeirados e não trincados, que foram e estão sendo arrancados à ferro e fogo, a sangue frio… a elogios…
Quem me diz o que aconteceu aqui?
Porventura alguém entrou na casa à noite, enquanto eu dormia?
Assaltaram-me a confiança e quebraram-me as janelas?
Meus cadeados, minhas chaves, minha segurança, cadê tudo?
Quem tão sorrateiramente furtou o meu direito de ver a derrubada das paredes?
* * *
Um dia desses, pela manhã, acordei mas permaneci deitado…
Porém, tive de me levantar…
Talvez, com certeza, tive!
Mas com certeza talvez eu só queria me levantar…
Pela manhã – naquela manhã – não o quis, ou “simplesmente” não pude mais ficar acordado e permanecer deitado,
não naquele novo velho sofá…
Não pela manhã, não a partir daquela manhã,
não naquele confortável sofá…
* * *
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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Lendo este texto, uma crônica (se me permite chamar assim), depois de ler o texto
“Antes de somente querer”, publicado anteriormente, fico pensando como podem estar relacionados. Os nossos tantos quereres, materiais e imateriais, não são todos acúmulos? Penso que a resposta pode ser sim. E quando percebemos isto ficamos paralisados. Queremos isto, queremos aquilo, somos influenciados a quereres…e vamos acumulando e é quando percebemos queremos só o simples. Sei que o texto não se trata disto, mas, talvez por ter lido os dois textos seguidamente me veio esta sensação. Este medo que apavora pelo desconhecido é provocativo deste questionamento, o que quisemos até aqui? Foi importante? …este trecho: “Contudo, num movimento calmo-inconsciente, resolvi recuar e olhar para os objetos ao meu redor… Que era aquilo tudo?” é certeiro.
Tenho está sensação quando percorro a casa…abro gavetas…cheias de quereres! E as cadeiras? Sem ninguém. Este ponto me chamou a atenção, pois curiosamente, este dias contei quantos assentos tinha na minha casa. É quando mais dói. Tantos lugares e para quê, para quem?
Um forte abraço! Demoro mas apareço! Seus textos são ótimos (já disse isto rsrs)
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Meu amigo Geraldo, não sei ao certo quais sentimentos a leitura dos meus textos evocam em você, mas se forem parecidos com o que senti lendo o seu comentário, eu diria que é algo muito profundo… que só a linguagem poética pode tentar traduzir…
Ler a correlação que você faz entre os textos, finalizada com o seu relato pessoal ao fim do seu comentário, evocaram sentimentos complexos em mim, complexos e muito fortes, e digo sobretudo no sentido positivo do dizer, do sentir, do ler. Muito obrigado por comentar com essa sinceridade que é notória! Fiquei emocionado com esse comentário, de verdade!
E saiba, você está certo! Esse texto não é desgarrado do anterior… eles se comunicam profundamente, um está no outro de forma que suas particularidades denunciam essa ligação.
Muito obrigado por deixar aqui a sua rica visão!
Volte sempre que puder e desejar – e que seja no seu tempo!
Um forte abraço, meu querido!
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