Há um lugar de não-estar;
um lugar de não-sentir mais que bem-sentir;
sente-se as agulhas da história em seu ativo revezamento entre as brancas navalhas.

Há um espaço que é de não-poder.
Não-poder respirar;
não-poder-querer;
não-poder-estar;
não-poder-ser.

Ele é essa sombra fresca que recobre e que refresca a branquitude para que em suas redes se balancem e aproveitem o descanso que o privilégio lhe confere.

É nesse espaço que dormem as criaturas que constroem casas, palácios e piscinas, mas que não têm seus abrigos seguros e por vezes morrem de sede.

Esse espaço produz a distância que assegura privilégios a uns na proporção inversa e magnificada que reduz direitos de outres.
Eis a dimensão externa desse espaço.

Mas há também um espaço aqui dentro;
bem aqui dentro,
onde as luzes intermitentemente piscam de dia e de noite,
sinalizando que um perigo está por se revelar
– e que frequentemente se revela.

É também nesse espaço interior, nesse local chamado de subjetividade, nesse recôncavo religiosamente nomeado de alma e amigavelmente apelidado de coração que mora o medo.

O medo, esse operário exemplar, insistente e assíduo, ávido por trabalho,
constrói edifícios e mais edifícios nesse espaço;
prédios de desconfiança;
residências de inseguranças;
condomínios inteiros de casinhas baixas, bem baixas e abandonadas, chamada de autoestima;
ruas de solo movediço e alagado de aflição líquida, aquela que adentra a vários espaços.

Quisera eu um dia crer que esse espaço era fictício;
quisera eu um dia crer no amor que dizem haver no lá fora;
eu já quis provar do licor da confiabilidade;
já quis me entregar de verdade.

Mas era e é assim: toda vez que eu estava ali também estava o operário, com sua tenaz acesa,
pronto para marcar na minha pele outro não-poder-desejar.
Quiçá desejasse assim mesmo, mas o desejo passava rapidamente ao toque da tenaz.

Há um espaço aqui dentro que, de tanto olhá-lo e não gostar do que vejo, não o olho mais;
mesmo assim sei que suas luzes seguem cintilantes, fortes, vívidas, intermitentes.

Há um espaço criado aqui dentro que não o reconheço mais como eu;
o espaço quiçá seja o que retiraram de mim quando me racializaram;
muitas coisas, algumas das quais nem faço ideia…

Foi cavado um poço que de tão profundo não vejo bem se tem um fundo;
se tem fim, parece mesmo que seu fundo se aprofunda a cada dia.
O racismo é esse poço, é esse espaço, é aquela sombra.

Quem sabe seja também ele esse espaço paradoxalmente chamado de dor de esperança:
ora se tenta dele sair, ora se acredita que não existe um mundo para além dali.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

[ . . . ]

Use o espaço dos comentários para compartilhar também a sua opinião por aqui! Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Conheça o meu canal no YouTube e o sigam-me no Instagram. #VocêJáParouParaPensar

Obs.: imagem utilizada para confeccionar a capa dessa publicação foi obtida aqui.