“Quem É você?” Essa pergunta tão simples, tão repetida e mesmo assim tão negligenciada, geralmente encontra respostas práticas – à espera, na ponta da língua. A primeira delas é “eu sou  fulan@ XYZ“, “tenho ‘X’ anos“, e “o meu CPF é ‘tal’“. Quando aquele que pergunta vai mais longe, surgem respostas que variam desde a formação profissional até o local de nascimento. E a pergunta segue sem resposta.

“Como você ESTÁ?” Eis aqui mais uma daquelas perguntas repetidas, porém vazias tanto de resposta quanto de interesse da parte de quem a faz e de quem a recebe. Quantas vezes, ao ser perguntado como você está? a sua resposta foi verdadeiramente profunda? Quantas vezes você esteve livre para dizer o que sentia sem medo de sofrer qualquer tipo de ‘represália’? Além disso, quantas vezes você até quis dizer o que se passava dentro de si, mas percebeu que a pergunta não era verdadeira, feita apenas por costume ou para puxar um assunto?

É como se existisse uma barreira entre aquilo que as pessoas veem e aquilo que realmente somos. Quando não, existe uma barreira entre o que nós mesmos somos e o que desejamos ser. Não raramente, podemos estar num estado existencial, mas não sermos ou pertencermos a esse estado. E assim segue o rio. As explicações ou suposições são variadas. Contudo, eu costumo pensar pela questão da identidade como um fator decisivo na construção daquilo que entendemos por ser humano e, consequentemente, o que entendemos de nós mesmos.

A História elenca diferentes fatores que nos apresentam determinadas explicações para as transformações da humanidade, mas ela não caminha sozinha. A Antropologia, a Biologia, a Sociologia, a Psicologia e a Psicanálise, entre outras importantes áreas do conhecimento, atuam nesse campo como parte do processo de compreensão do nosso desenvolvimento e adaptação ao longo de nossa existência enquanto espécie. Uma parte dos esforços acadêmicos nos revelam a transição social pela qual passamos até estarmos da forma que percebemos hoje. Fato é que passamos de pequenos agrupamentos para mega blocos. Se em um passado não muito distante vivíamos em pequenos grupos, hoje dividimos nossa vida com milhares ou milhões de pessoas. Pode-se pensar em pequenos grupos como os da época pré-histórica, em que os seres humanos não ultrapassavam os 40 indivíduos por bando, mas não devemos descartar que mesmo no começo do século XX os grupos, embora muitos maiores que de 40 pessoas, não eram tão diversificados quanto imaginamos. Nessa ocasião não era incomum que famílias inteiras convivessem por várias gerações em uma mesma localidade, sem fazer a menor ideia do que acontecia ao redor do mundo e sem imaginar que existia uma diversidade que ultrapassava o limite do entendimento local sobre a vida. A fama das cidadezinhas de interior, nas quais todo mundo conhece todo mundo, ainda é viva hoje. Mas será que funciona da mesma maneira? E será que grupos menores são garantia de mais conhecimento e reconhecimento inter e intrapessoal?

Tudo mudou muito rapidamente na configuração das sociedades sapiens. Repito: saímos de grupos diminutos para uma conectividade megalomaníaca. O advento da internet, o avanço qualitativo e quantitativo das telecomunicações e a facilidade do deslocamento humano contribuíram para aquilo que o geógrafo britânico – David Harvey – chamou de “encolhimento do mundo, em seu livro Condição Pós-Moderna. O mundo ficou muito “menor” que já foi um dia; pessoas de diferentes cidades e países que se contactavam no intervalo de semanas ou meses hoje precisam de menos de um segundo para realizar a mesma tarefa – assinar um acordo político, por exemplo. Hoje, pode-se falar com pessoas de praticamente qualquer país, basta para isso dois pontos de contato virtual.

A espécie humana surgiu há cerca de 200 mil anos, e a grande questão por trás desse rápido desenvolvimento logístico é que evoluímos por milhares de anos cooperando em pequenos grupos, desenvolvendo afetos que se restringiam a uma porção muito pequena de Homo sapiens. Entretanto, foi a partir da Revolução Agrícola – há aproximadamente 10.000 anos – que grupos muito maiores começaram a se formar; e essa transição rápida não nos deu tempo suficiente para construirmos uma forma mais eficiente de cooperação e interação social que permitisse o convívio saudável (ou minimamente danoso) em grandes aglomerados. Um dos resultados dessa aceleração no desenvolvimento social é a proeminente crise de identidade que se percebe na nossa espécie.

Dentro daquilo que compreendemos por História não há um só momento em que a questão identitária não esteja envolvida. Aprendemos o tempo todo o que os outros fizeram do mundo, mas nunca olhamos para nós mesmos e nos vemos inseridos plenamente no que dizem. A História pode até tentar uma sinceridade naquilo que apresenta, porém ela é cega e sem direção, não existe justiça na história. Quem a faz não necessariamente é quem a vive; certa vez, Yuval Noah Harari afirmou que “a história é aquilo que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água“. Nesse sentido, é razoável dizer que o espelho da História sempre mostra o que nunca existiu, mas o que poderia ter sido e não foi. Como todo espelho, ela conjuga uma imagem, e essa imagem pode ser virtual, invertida, maior ou menor – isso tudo depende do tipo do espelho, do tamanho do objeto observado e da distância entre eles.

Aprendemos ao longo do tempo a entender a História do mundo como sendo a nossa história. Acreditamos que os culotes são símbolos de identificação com aquilo que existe de melhor, de mais nobre; que existe de fato um modelo que representa uma classe “elevada” e “perfeita”, em detrimento de uma plebe faminta incapacitada. Pensamos involuntariamente que o certo é fazer o que faz a maioria; que a conduta mais adequada é aquela praticada milenarmente, sob duras regras e cuja aceitação é quase que universal. Tudo isso porque propagações de identidades comportamentais e filosóficas direcionaram – e direcionam – o modo de ser do Homo sapiens desde que este “preteriu” os pequenos grupos e entregou-se involuntariamente aos grandes ajuntamentos. Pensar no papel desempenhado por cada estrato social – como a hierarquização dos deveres e posições – e perceber como tudo isso se alterou é algo surpreendente. Nunca tivemos tantas opções de ideias, de estilos de vida, de crenças ou de profissões como temos hoje, porém, a nossa capacidade de saber escolher e de enxergar a importância de cada conquista nunca foi tão superficial e tão sem sentido.

Compreender essa dinâmica e atrelar a ela um pensamento crítico é fundamental para o desenvolvimento de uma identidade que seja mais próxima do que cada um de nós somos (ou poderíamos ser). Destaco que, ao contrário do que possam pensar, jamais devemos desprezar o conhecimento adquirido pela humanidade. Descartar todos os achados históricos e considerá-los sempre um equívoco não faz parte do que quero trazer para essa reflexão. Muito pelo contrário, a ideia é exatamente ampliar a nossa compreensão daquilo que entendemos por Mundo e por Sociedade. Muitas vezes não prestamos atenção em como os acontecimentos externos modelam poderosamente aquilo que acreditamos ser o nosso mundo interno – o psíquico. Para algumas pessoas é mais fácil fazer essa distinção; para a maioria, no entanto, a fusão é tão bem feita que se depreende quase de forma genuína que aquilo que acontece no mundo é a única opção possível de existência para cada indivíduo. Como resultado disso está uma enorme porta entre o que a pessoa realmente é e como ela está, mas que, na maioria dos casos, mostra-se como uma porta desconhecida. Muitos nem a chamam de porta, enquanto outros as trancam voluntariamente; há também os que nem ousam chegar perto dela. São vários os tipos de portas. Raríssimas estão abertas; umas até tem chaves, mas a maioria delas é vigiada por um porteiro imaterial, que diz quando, como e para quê cada uma delas deve ser aberta.

Não é tão difícil percebermos que não temos tanta autonomia sobre nossa própria mente – que dirá sobre o nosso próprio corpo. É como se uma voz, vinda sabe-se lá de onde, sabe-se lá porquê, reverberasse em nossa consciência diariamente dizendo o que nós devemos ser quando crescer. Mas nunca crescemos por nós mesmos. Não temos a liberdade de expressar o que de fato está em nossas mentes porque a maioria das pessoas não está pronta (ou disposta/disponível) para nos ouvir; não podemos ser tão sinceros quanto gostaríamos porque há uma norma fantasma vigente que diz inclusive como nossos pensamentos devem ser pronunciados. Escolher o que falar é um castigo enorme para quem tem uma mente inquieta, que se questiona de tudo o tempo todo. Querer prender um pensamento inconformado e cheio de dúvidas é como amarrar um dragão com fios de lã: pode até funcionar, mas só enquanto ele estiver dormindo.

A má notícia é que a indústria de soníferos está crescendo a cada dia, com inovações cada vez mais sofisticadas, que nos induzem a acreditar que realmente não podemos agir criticamente, pois ainda dizem que o fato de decidirmos nossa vida é por si uma atitude crítica – mas isso também uma ilusão. Dessa maneira, embora a ideia de autonomia – “Yes we can” – mantenha-se viva no imaginário coletivo, pouco podemos fazer com o que chamamos de nosso – seja o corpo, a fala, o pensamento ou a própria vida.

Por um lado, fazer revoluções, manifestações públicas e até mesmo paralisações são práticas humanas que historicamente têm servido para reivindicar maiores direitos à população – na tentativa de aumentar a liberdade de expressão, a segurança ou, que seja, as condições básicas de sobrevivência – como saúde, alimentação e educação. Entretanto, essas práticas nunca passaram despercebidas pelo Sistema. O tempo todo ele se prepara para compreender e driblar cada vez com mais brio qualquer um dos levantes populares que ouse perturbar o fluxo dos privilégios – que é unidirecional e que aponta para uma minoria rica. Enquanto isso, compramos a ideia de identidade fornecida pela grandes corporações – religiosas, comerciais, culturais, ufanistas – e as embutimos em nossas paredes do pensamento. O mal é consumado a partir do momento em que passamos a agir como se de fato tudo que existe em nós fosse fruto de nossas escolhas; quando na verdade não existe escolha alguma se aquilo pelo que “optamos” já é predeterminado – existindo inclusive uma punição para quem não fizer a “escolha” certa – ou seja, mais uma ilusão.

Por outro lado, a maior revolução que podemos fazer é deixar de alimentar os interesses desse insaciável sistema. Quando pararmos de dar comida aos famintos e gananciosos donos do superpoder eles morrerão de fome, ou tentarão viver com menos. Nós favorecemos a balança do sistema sempre que acreditamos precisar de tudo que ele nos oferece, como se fosse essa a nossa entranhável vontade – o que é uma armadilha. Acreditar que realmente fazemos nossas próprias escolhas é só mais uma forma de nos manter agarrados e dependentes de tudo que nos seja imposto. E geralmente aceitamos tudo isso sem reclamar.

A ilusão que preenche a ideia de que existe um livre arbítrio é uma dessas escolhas inexistentes, mas que as fazemos de bom grado. Dizem que você é livre para escolher pelo que lutar e como viver; mas na realidade você não tem opção, uma vez que em muitos casos se você realmente escolher o que deseja ser e como fazê-lo será diretamente classificado como uma pessoa triste, louca ou má. É o velho dilema de que você é livre para fazer o que quiser, desde que esse querer esteja rigorosamente alinhado com o querer de quem te ofereceu as possibilidades. No fim, não restam dúvidas de que a ideia de escolha e de liberdade é cerceada por preconceitos, por conservadorismos e por imposições inflexíveis que distanciam cada vez mais as nossas “escolhas” dos nossos desejos reais. Quem ousou negar as normas e arriscar ser um pouco de si, ou foi queimado na fogueira nos tempos mais sombrios, ou é ameaçado disso até os dias de hoje. Se no passado a fogueira derivava do fogo sobre a lenha, hoje ela é sinônimo de uma ardente exclusão social e de um isolamento traumático. Suspeito de que essa adesão intuitiva à normatividade – mesmo que ela seja injusta e violenta – deriva do nosso receio de sermos esquecidos.

Não há nada que apavore mais um Homo sapiens do que a ideia de abandono. Estar só sempre foi um pesadelo para a nossa espécie, enquanto estar plenamente inserido em um grupo é o grande sonho da humanidade. Somos capazes de abdicar de nossos próprios anseios para manter a imagem de um grupo coeso. Adotamos um novo estilo de nos vestir, adequamos a nossa fala e a nossa palavra ao que pede o grupo, escolhemos o que e como comer, delimitamos os nossos círculos de amizades e de relacionamentos e podamos todas as folhas que tirem o formato do grupo ao qual acreditamos pertencer; tudo isso para nos manter com uma identidade fixa e, sobretudo, para que possamos nos sentir alguém. E repito: que tenta fazer diferente pode colocar em risco sua própria vida – e o fazem corajosa e brilhantemente.

A nossa capacidade de desejar uma identidade ampliada vai até o ponto de eliminar determinadas pessoas que se atrevam a pensar diferente daquilo que fomos ensinados. E essa eliminação inclui até mesmo a nossa própria pessoa. Abafamos e sufocamos os nossos sonhos mais encovados para que sobressaia a identidade do grupo. Só não percebemos que mais uma vez estamos separados pela porta do ser  e do estar. Estamos “felizes”, comprando coisas, produzindo tecnologia, tirando fotos sorridentes, dançando em volta de fogueiras à noite com nossas tribos e fazendo o que pede o dono do figurino – simplesmente porque disseram que isso é felicidade. Porém, nem sempre somos quem desejamos ser – talvez porque desistimos de nós mesmos. Essas reflexões estão por toda parte, de toda forma, mas a nossa pressa pela vida é tão grande que não dá tempo de fazer quase nada do que realmente nos tornaria melhores – isso porque tentamos ser o que não somos. No livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, lê-se algo assim: “E com uma letra bem pequena, lá estava escrito no seu epitáfio: tentou ser, não conseguiu; tentou ter, não possuiu; tentou continuar, não prosseguiu; e nessa vida de expectativas frustradas tentou até amar… Pois bem, não conseguiu, e aqui está“. A pergunta que fica é: o que, por que e para que estamos tentando?

Há que se reconhecer que essa “porta” que nos separa de nós mesmos é feita de muitos materiais, e que nem sempre somos nós que a controlamos. Entretanto, suspeito de que sua maçaneta seja feita de medo e de pavor – que são materiais bem resistentes. Temos medo da frustração, de não “dar certo”, de sermos rejeitados, de não pertencer a nenhum grupo e de fracassar; mas raramente temos medo de não tentar abri-la o bastante. Abrir essa porta e transitar entre o mundo objetivo e o subjetivo é um desafio enorme. Trafegar entre o universo subjetivo do mundo que nos cerca e entre a nossa própria subjetividade é ainda mais complexo – mas é o que significa abrir essa porta. O maior refém é o refém de si mesmo – pois quem pode abrir a porta está crente de que ela não existe – e segue-se conformadamente inconformado, num sistema que incentiva e recompensa esse comportamento paradoxal.

Quem é você? Como você está? Você consegue responder a essas perguntas com transparência e sem se iludir? O que você tem feito da sua vida que realmente seja uma escolha sua e que em nada envolva desejos da sociedade? Existimos para além da sociedade? Você já existiu dessa forma? Temos tanta pressa de viver e esperamos tanto pelo dia seguinte que o de hoje está passando e nada dele é vivido com intensidade. Se estamos em um ajuntamento, pensamos numa foto, tiramos e publicamos essa foto e aguardamos pelas curtidas. Se nos dirigimos a um encontro, esperamos pela opinião do outro; se escolhemos um curso, ficamos preocupados com o salário que receberemos dali a cinco anos; quando da gravidez, espera-se ansiosamente pelo que será a criança quando crescer. E no final da vida, terminando a velhice – quando se enfraquecem as luzes -, lembramo-nos de tudo que vivemos e não identificamos muitas coisas que foram feitas de nós para nós. É nessa hora que percebemos o quanto demoramos para abrir a porta e então desejamos voltar no tempo. Essa frustração é tamanha que, se fosse dada uma segunda chance, a porta seria arrombada de vez, para que nunca mais pudesse ser fechada. Mas uma história só é relida em livros. Na vida real a fazemos a cada dia; e, se você pode fazer uma história nova hoje, não espere para dizer “Pois bem, não consegui, e aqui está“. A história da humanidade não é regra para a nossa história. Tente compreender o mundo, mas não deixe de compreender a si mesm@ e de se esforçar em descobrir e abrir a sua própria porta.

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 

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NOTA: a imagem da capa foi obtida neste link.