Movimentar-se num sistema, seja ele qual for, exige incômodos. Esses incômodos podem ser qualquer condições num determinado meio que produza no organismo a necessidade de busca por um ambiente que seja mais agradável ou, no mínimo, menos desconfortável.

Pensemos nos seres humanos que vivem em sociedade – ou seja, todos! Diariamente, cada pessoa precisa enfrentar obstáculos que variam de acordo com suas condições sociais: cor, gênero, classe social, etc. A depender de como essas pessoas estão colocadas na sociedade pode ser que percebam mais ou percebam menos as diferentes condições que tal sociedade apresenta aos indivíduos.

Para que as desigualdades sociais sejam percebidas pelos sujeitos eles precisam estar sensíveis à essas percepções. Estar num sistema desigual nem sempre é garantia de que o sujeito se perceba assim; existe um mecanismo que produz nos sujeitos a negação de sua situação e prega o mérito como aquilo que justifica a “não-ascensão”, e além disso destrata a imagem do que é ser pobre. Em outras palavras, há uma insistente dessensibilização social que faz pessoas não privilegiadas desejarem com todas as forças estar do lado privilegiado, tornando-as, para isso, incapazes [ou insensíveis] aos desalentos vividos socialmente. Não significa que não sofram, significa que seu sofrimento é ressignificado e, por vezes justificado. “Se você está nessa situação de escassez de recursos não é porque o sistema te oprime e te mantém aí, é porque você não se esforçou o bastante“, diz a Meritocracia de cada dia.

Movimentar-se requer custos energéticos, é preciso uma motivação de alguma natureza. E motivação, aqui, nada tem a ver com algo positivo, é literalmente um motivo para que aconteça um comportamento. Logo, é preciso que surja um incômodo ao notar o sistema tal como ele é. E disso vem a questão: por que certas pessoas nunca se incomodam com os diferentes cenários vividos pela população? Por que muitas pessoas se fecham em suas bolhas conceituais e existenciais e agem como se ignorassem totalmente tudo que se passa à sua volta? Quem se incomoda? E quem se incomoda se incomoda por quê/quem?

Uma das minhas hipóteses é que há pessoas que não se incomodam num nível que seja o suficiente para se movimentarem no sentido de promover mudanças nem de consciência nem de comportamento. E esses não-incômodos são protegidos por seus privilégios, como quando ao usarmos fones de ouvido nos isolamos perceptual e mentalmente do meio em que estamos, passando a ouvir somente o que desejamos. Pense o seguinte: ser homem, branco, cis, hétero, rico e sem deficiências é como ter aqueles fones de ouvido potentes, com isoladores de ruído externo. Para perceberem outros sons, precisam de uma ação mecânica: desligar o fone, ou seja, desligar o olhar de supremacia e de egocentrismo e passar a perceber o mundo ao seu redor. Quem faria isso gratuitamente? E nem diga “mas nem todo homem…”. Mas caso insista em dizer, saiba que pensar isso só revela o quanto aquém de perceber as mudanças você está.

Uma vez inseridos em ambientes que estão do lado favorecido da desigualdade social, os sujeitos são constantemente anestesiados e alimentados à base de alienação para que cada vez menos olhem para traz dos muros q tentam esconder a desigualdade. Ou, se quiser manter a metáfora, seus fones são tão isolantes que jamais escutariam espontaneamente os gritos de quem cai no abismo.

Há, também, aquelas pessoas nas quais o incômodo produz sobretudo o sentimento de repulsão. Aqui, incomodar-se com a desigualdade é também um mecanismo para amplificá-la. Nesse sentido, quando destaca-se a pobreza, pondo-a como a inimiga das nações sem que se tente combatê-la, quando se olha para os não-ricos e logos lhes taxa como inferiores e indesejados, cria-se um sistema que, como introduzi antes, lucra com o sonho da ascenção social. Ascenção essa que para muita gente não passa de um sonho perseguido sem sucesso.

Independentemente de qual seja o ponto, toda mudança social provém de um incômodo; e há pessoas que estão tão bem colocadas em seus privilégios e em suas bolhas que se blindam daqueles incômodos que as fariam enxergar a catástrofe social em que vivemos.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem de fundo, usada para compor a capa desse texto, foi obtida aqui.