Assim vai acontecendo: muitas coisas para dizer, muito para ser colocado para fora; toneladas e mais toneladas de uma vivência que não se elabora sozinha. Esse acúmulo é demasiado pesado para ser carregado em suas entranhas, para ser gerado em seu útero simbólico do pensamento, é demasiado cruel conviver consigo quando não se conhece muito bem a si, ou, ainda que se conheça, quando há uma certa aversão ao que se conhece – e os caminhos existencias que levam a esse fenômeno são tão complexos quanto são variados. Não necessariamente é sempre desse jeito que surge a necessidade de depositar nos outres os seus pensamentos. Às vezes, e desconfio que na maioria delas, o que talvez falte é um espaço seguro e acolhedor de elaboração de suas angústias. É nesse movimento psicológico e social que complexamente se desenha um termo nascido de conversas reflexivas hoje com Gabs, e que aqui será chamado de despejismo.
Despejismo é o ato de utilizar das relações como se elas fossem um quarto de despejo, no qual se deposita seus dejetos e desencantos, suas vivências e frustrações, mas também suas aspirações e conquistas, bem como seus desejos e fantasias, tudo isso sem se importar com o que a outra subjetividade tem a dizer. Menos ainda há o interesse em saber como esse despejo afeta a relação, nem em como esse despejamento continuado e quase obsessivo afeta as subjetividades que participam dessa relação.
É como no caso dela lá,
nunca me procurou para honestamente me perguntar como eu estava
e de fato querer saber a minha resposta;
no máximo havia um protocolar “como você está?”,
que, dentro do roteiro do bem-estar social, serve como porta:
a porta que dará acesso ao quarto onde serão despejadas as suas histórias acumuladas e acumulativas.
Tem também aquela outra pessoa,
que vez ou outra diz “nossa, falei muito de mim, nem te ouvi direito”…
mas que na materialidade das coisas não tinha intenção alguma de,
com essa frase,
sugerir o mínimo interesse em de fato ouvir;
novamente, protocolos acríticos…
protocolos para acalmar uma mente que só quer uma coisa:
despejar-se no outre.
Pergunto-me qual a função de buscar por quartos de despejos nas relações.
Por um lado, até se argumenta que tais pessoas deveriam fazer isso na terapia.
Até concordo, mas só em partes!
Acho triste demais que vivamos na Era da Terapia,
na qual a terapia é vendida como o único lugar em que se pode falar de si de um modo mais cru e mais sincero.
Acho triste também que o falar honestamente de si seja de fato pouco interessante em muitos vínculos,
por vezes é até indesejado ou inadequado;
não há nem paciência, nem preparo emocional para escutar,
menos ainda que há desejo em contatos mais aprofundados e íntimos;
mas não vamos desconsiderar que muitas vezes não há nem tempo nem saúde mental para isso.
O viver tem seu peso existencial, e dele ninguém escapa.
Nessas horas, sem dúvidas a noção de levar pra terapia é importante.
Eu sempre tenho repensado minha vida de uma maneira muito complexa. Fato é que algo meu ficou ali, no 19 de setembro; algo que nunca mais será igual. Pensar minha subjetividade, inserindo a neurodivergência nessa elaboração para além de tudo que eu já considerava “eu” , e sentir minha própria vida fluir e meus pensamentos soltos serem respeitados por mim é algo que pertence à essa nova “vida”. São os meus limites sendo considerados no meu modo de existência, que é existencialmente melancólico, não-otimista e crítico.
É a partir dessas noções de quem eu sou que eu sei o que eu não quero ser,
é sabendo o que não quero ser que vou entendendo outras coisas que eu posso ser;
na curva da história está o desconhecido,
nos rastros dela está aquilo que aconteceu;
vou observando um para compreender o outro;
e por isso digo que não quero ser um quarto de despejo.
Não quero mais ser somente o ombro que serve de apoio,
renuncio ser aquela pessoa que só acolhe e só escuta;
que escuta só e acolhe só;
que só diz vamos,
Mas que sempre fica… ou é deixade… só…
Abdico da posição de ser sempre eu a me dispor e a me disponibilizar;
digo basta! para para essa casualidade utilitarista.
Abstenho-me de relações que se aproximam de mim com a intenção de exclusiva e necessariamente conseguir alguma vantagem.
E não é o caso de eu não querer ser escuta, apoio, disposição e disponível para as pessoas; mas é sem dúvidas sobre eu me recusar a ocupar somente esse lugar, que por isso se torna medíocre, desonesto e miserável. Relações não se significam na unicidade, elas existem entre e com as partes, então que sejam assim: que sejam multidirecionais. Não quero só escutar, quero também ser escutade. Não quero só ouvir, quero que me ouçam; não quero apenas acolher, abraçar, procurar, perguntar, aquecer ou ser presente; quero que sejam isso pra mim também. Afinal, reitero: relações não se fazem na unicidade – o nome disso é algo mais próximo de narcisismo e egocentrismo (para dizer o mínimo).
Além disso, não se trata especificamente de uma lógica de “tudo em troca”, muito menos de “pagar com a mesma moeda”. Não que querer que haja trocas nas relações seja um posicionamento errado, pois não é. Em vez disso, é sobre eu saber que não sou um objeto de utilidade descartável. Se o que você busca é apenas uma escuta qualificada, um tempo de desabafo e um momento exclusivamente seu para que ocorram seus despejos, há uma boa notícia (ou, ao menos uma alternativa honesta e viável): eu e outras pessoas estudamos por vários anos para saber como escutar, nos profissionalizamos com excelência e, portanto, oferecemos uma escuta profissional. Mas há que pagar o preço, que tem seu valor e sua legitimidade. Mas não me use como terapeuta mascarando isso de amizade. Não chame de amizade a sua necessidade por um quarto de despejo.
Quero ser amigue,
quero ser colo nas angústias,
quero ser amor,
quero amar,
quero ser amnade,
quero ser amante.
Mas e a reciprocidade?
Reciprocidade não é o mesmo que igualdade. Em vez de corresponder na mesma medida, ser uma pessoa recíproca é saber que não sou um mero recurso de alívio para o seu tédio. Reciprocidade é haver correspondência no interesse, no desejo de saber, na vontade de coexistir. Ser uma pessoa recíproca não é sobre o que se devolve, não é sobre pagar uma dívida nem é especificamente sobre aquilo que se dá numa troca; não se trata de ter de fazer, mas de fazer por querer. Reciprocidade é sobre o que movimenta a ação. Pessoas são diferentes e possuem estratégias e recursos materiais e subjetivos diferentes. Cada pessoa tem um jeito e uma possibilidade de demonstrar a mutualidade do afeto, caso exista essa possibilidade. Se de fato houver interesse, desejo, vontade e impulso pela relação em sua mutualidade e reciprocidade as pessoas encontrarão meios para que isso seja revelado e comunicado; buscarão caminhos possíveis para demonstrar essa reciprocidade que, novamente, não se trata de devolver em cópia as atitudes recebidas.
Por isso que “talvez” deveríamos deixar nítidas nossas expectativas,
ou no mínimo deveríamos sinalizar se queremos trocas ou somente serviços;
se você quer serviços, pague por eles;
se quer trocas, faça também a parte que lhe cabe com as condições que você tem.
E, depois de expostas as intenções e possibilidades, cada qual decide se fica ou se vai.
E eu já adianto que não quero me oferecer enquanto um quarto para você despejar suas cargas mentais e ir embora, voltando na próxima leva de descarrego.
Então, esse comportamento de despejismo acontece por falta de ética ou por ausência de controle emocional? [Ou as duas coisas?]
Isso existe por ausência de [auto]críticaproduzida por uma percepção específica do que é relacionamento, que desconsidera a existência subjetiva de outras pessoas na relação?
No despejismo, a pessoa que despeja se comporta assim porque para essa é a única realidade possível, ou porque ela seleciona conscientemente quem e quando serve de despejo? [Ou as duas coisas?]
Que lugar você ocupa nas suas relações?
Que lugar as outras pessoas ocupam nas suas relações?
Você escuta na mesma medida [e espontaneidade] que você fala?
As pessoas com quem você conversa são para você algo além de cômodos para você visitar quando quer/precisa descartar sua carga mental?
Se a partir de hoje você se aproximasse das pessoas somente sem fazer delas um local utilitarista de despejo, sobraria alguém para você se relacionar?
Explicando melhor: se a partir de hoje você escolher estar somente com aquelas pessoas com as quais você não utiliza para ter a vantagem de uma escuta consumista, se a partir de já você não procurasse mais as mesmas pessoas que você procura para seus desabafos unidirecionais, e se a partir deste momento você excluísse dos seus círculos de amizades aquelas pessoas com as quais você tem conversas profundamente centradas em você, quem restaria? Qual seria a sua chamada rede de apoio?
Quem você enxerga para além de um objeto que te traga exclusivamente vantagem e benefícios?
O que muitas pessoas despejistas chamam de rede de apoio é consumismo afetivo.
Escuta. Acolhimento. Validação. Respeito. Risadas. Fofocas. Afetos. Desabafos de angústias… esses componentes costumam fazer parte de relações mais complexas; e tendem a ser mais intensos à medida que as relações se aprofundam e que se constrói a intimidade. Na medida em que existe uma mutualidade no contato, nas trocas e na vivência, o espaço de trânsito afetivo costuma ser mais fluido. No entanto, na lógica do despejismo, essas dinâmicas não são compreendidas em direções plurais; em vez disso, ela se volta num senso de exclusividade para a pessoa que despeja.
Sabe aquela relação em que uma pessoa sempre orienta o assunto para as necessidades dela?
Você já conversou [ou conversa] com alguém que não consegue te dar um minuto pleno de atenção e que não consegue dialogar minimamente com você porque de alguma maneira ela faz a conversa gravitar ao redor dela e vira um monólogo?
Pense numa pessoa que só te procura para conversar quando ela tem algo a te dizer ou algo a desabafar/desabar. Como costuma ser sua relação com essa pessoa? Quanto de espaço você tem para também falar de si? Ou melhor, quem é você nessa relação: a pessoa que despeja ou o quarto despejo? [ou as duas coisas]?
Me contaram esses dias de uma relação de mais de 10 anos, na qual depois de algumas autocríticas e observaçãoes mais direcionadas, uma das pessoa notou que, durantes aqueles anos, todos os encontros eram orientados e direcionados à outra parte da relação. Repare, foram mais de 10 anos com um modelo de relação quase que naturalizado no monólogo, onde não havia trocas; não havia uma partilha genuína. Em vez disso, de uma lado havia alguém que aprendeu (e/ou se acostumou a) sempre despejar suas necessidades, e do outro lado uma pessoa que por muito tempo se conformou a esse formato assim como a água líquida se adequa ao formato do vaso em que é colocada.
Num ideal de relação romântica, romper um vínculo, ou tensioná-lo com questionamentos e imposição de limites é algo que costuma acontecer quando um sofrimento nomeado, ou até mesmo uma violência explícita, se apresenta. Nesse modelo, se estamos numa relação em que cabe o pensamento de “vou levando”, de fato a situação se prolonga por anos; em alguns casos por toda a vida.
Quantas agressões e quantos apagamentos são necessários para entendermos que a reciprocidade não é uma exigência, mas um componente inerente ao ato de se relacionar? Quando entenderemos que mesmo com amor, e às vezes com muito amor, ainda assim é possível – e às vezes até saudável – o distanciamento? Porque afastar-se precisa ser sinônimo de odiar? Quem disse que por amar muito devemos suportar o insuportável? Enquanto essas lógicas de reconciliação e de manutenção a qualquer custo for critério máximo de construção relacional o sofrimento terá uma alta probabilidade de estar presente.
Pessoas despejantes nem sempre são brancas, assim como nem todas as pessoas pessoas brancas fazem isso, no entanto, há um traço de branquitude, um fazer-colonial muito marcado no despejismo: o descarte e o abandono. Fundamentalmente, a colonização, logo, a branquitude, opera na lógica da exploração de recursos, no esgotamento do território e de seus frutos para, em seguida, abandonar o terreno quando ele não tiver mais nada a oferecer. Não existe nessa prática o cuidado, desde o início, de não esgotar e não destruir o ambiente de convívio; não há o sentimento de manejo, tampouco uma coabitação consciente de modo a promover uma sustentabilidade e, assim, evitar o desmatamento, a erosão, a seca e o desastre. Na melhor e mais rara das hipóteses, quando a situação está crítica, e quando o colonizador não tem outra escolha senão conviver no território que ele próprio devastou, ele tenta uma recuperação, uma mitigação tardia e muitas vezes insuficiente. Mas ainda assim é uma recuperação que não guarda nenhum afeto e consideração com o espaço, apenas diz respeito à sobrevivência colonial. Do contrário, o descarte seria a estratégia aplicada. E muitas pessoas que sofrem os impactos da colonização, que são colonizadas, absorvem essas tecnologias coloniais. O colonialismo precisa ser assimilável para que se espalhe de modo memético; ele precisa ser assimilado para que se enraize em tantas subjetividas quanto for possível. E o despejismo, enquanto uma expressão colonial nas relações também se propaga em todos os meios, afetando todas as subjetividades. Quanto menos marcadores sociais da diferença você carrega, mais esse modelo tóxico de se relacionar tende a te favorecer.
De modo semelhante, o despejismo opera na lógica da ocupação e do descarte, fundamentalmente. Ao mesmo tempo que você será uma mira para o despejo, você será descartável se não mais atender à demanda. Você não é insubstituível caso seja considerade inútil ou insuficiente.
Com a mesma intensidade de aproximação e com o mesmo fervor que as conversas iniciais acontecem, acontecerá o descarte. Você será substituíde na mesma intensidade que foi tornade necessárie. O despejista não busca somente quem lhe escute, mas busca um quarto que seja espaçoso e disponível o suficiente para receber seus dejetos cotidianos.
Talvez haja a pergunta de “por que, então, fala-se de quarto de despejo e não de um lixão de descarte?”. Eu penso que é justamente porque no quarto de despejo que a pessoa vai depositando seus desabafos ao passo que consegue manter contato com eles, num lugar conhecido; ela vai levando até você aquilo que não consegue [ou rejeita conseguir] guardar em si e nos outros quartos. Por vezes, faz parte da dinâmica despejista ter vários quartos de despejo para dar conta de toda sua incapacidade em lidar com as elaborações; pode ser o caso de ter várias opções, pois, em algum momento essa pessoa percebeu que era muito arriscado depositar todas as suas elaborações inconclusas em um só quarto e ver que a despejista foi despejada, no sentido de ter seu despejo negado e se ver na urgência de recolher seus monstros e apressadamente realocá-los em outro quarto, já que a própria pessoa não se considera apta a lidar com seus monstros.
A elaboração emocional está longe de ser uma travessia simples ou fácil;
olhar para si, perceber-se em si é um desafio;
Quem teme a si mesme,
e quem não sabe o que grita em seu interior,
precisa de espaços alheios que se ocupem de seus pensamentos;
estar num espaço emocional o qual odiamos pode ser a coisa mais terrível que existe
(e às vezes pode só o nosso próprio pensamento esse espaço).
Daí a brecha que a Igreja encontrou,
daí a vantagem neoliberal, de anestesiar o pensamento;
daí o veneno que nos entorpece de nós mesmes;
isso cria pessoas que só se enxergam em si mesmas,
mas que mesmo assim esse “em si mesmas” precisa ser convertido no “outro”;
busca-se o outro como a fosse a si mesme,
numa dinâmica autopredatória sem sucesso
mas que preda quem atravessa seu caminho e lhe oferece uma escuta sincera;
Hoje uma amiga me disse algo que faz muito sentido nessa conversa aqui:
“Acho que pra algumas pessoas crentes, principalmente mais velhas, principalmente quem nasceu e formou suas bases na igreja … deve ser muito desesperador ter que sair da caixinha e reconstruir todo um mundo aos seus pés …ter que se deparar com a contradição… encarar o vazio… perder o patriarca imaginário autoritário porém protetor… ter que se deparar com a própria hipocrisia… ‘As pessoas adoecem por tentarem domesticar o indomesticável’… ouvi esta frase numa palestrinha de psicanálise ontem, e olha… bateu forte… e se encaixa tão bem pra taaaaantas situações”
[Pati Rigon, 25/12/2023]
Quiçá o despejismo seja, por outro lado, também um grito de socorro;
um pedido por ajuda;
ele pode ser uma busca justamente pela elaboração,
ou a expressão dessa busca;
pode ser o resultado de uma vida inteira de solidão, abandono e invalidação
que produziu alguém que não se percebe merecedora nem de amor nem de carinho,
e que por isso cria uma situação em que isso seja [re]significado como receber atenção a qualquer custo,
inclusive ao custo de reproduzir a invisibilidade, a invalidação e a anulação da subjetividade alheia transformada em quarto de despejo;
quicá seja essa a única leitura do amor, do afeto e da comunicação que lhe foi ensinado.
(PS: não estendo esta parte específica da análise para pessoas brancas hegemônicas, ou para os agentes do patriarcado, que em sua construção de história de vida, e sobretudo a partir de seus privilégios, sempre foram autorizadas e estimuladas a serem o centro gravitacional de todas as coisas. Essas pessoas que lutem!)
* * *
Para mim, falar dessas coisas aqui no blog é, de certo modo, poder respirar nesse mundo sufocante.
Eu tenho entendido cada vez mais, embora ainda que bem lentamente, que não sou os outres,
por consequência, entendo também que os outres não são eu;
e isso tem feito diferenças na minha vida, de várias formas.
Perceber, suspeitar e questionar sobre o autismo como uma possível condição que me atravessa e que me pertence me dá uma orientação existencial;
a minha existência precisa fazer sentido para mim,
ou, ao menos, eu preciso me convencer minimamente que existe um sentido no viver…
saber que tenhos necessidades afetivas que são da ordem da reciprocidade,
saber que para eu me sentir no vínculo ele precisa ser recíproco (lembrando do que isso significa pra mim como disse lá atrás);
compreender que não exijo que mudem por mim, mas também aceitar que não preciso me torturar para caber nos espaços que me disseram (ou que eu me disse e que eu acreditei por muitos anos) que eu pertencia;
tudo isso e muito mais faz parte de eu me aceitar em vida.
Pensar sobre meu sentido de vida inclui pensar sobre o morrer;
e sempre pensei nisso, por diferentes motivos,
mesmo que esse pensamento tenha encontrado e encontre pouquíssimo espaço aberto para um diálogo saudável.
Para muitas pessoas, o tema suicídio é um tabu;
Falar sobre uma tentativa de suicídio pode soar como um ato vexatório;
falar desse assunto é quase como no mito bíblico, no qual Ado (ou Edith), ao olhar para trás e ver Sodoma e Gomorra em chamas foi imediatamente convertida numa estátua de sal [Gênesis, 19: 26], isso porque desobedeceu a ordem de um deus que não queria que ela observasse o quanto ele era impiedoso e destrutivo.
Olhar para traz e [re]viver certas experiências, por mais traumáticas e/ou complexas que elas tenham sido, pode ser interpretado como um duplo castigo;
castigo esse que ameaça te esculturar naquele momento,
que te pune a ser eternamente aquela condição;
mas também um castigo que ameaça te rotular como alguém inconforme, com defeitos.
Não treinamos nosso olhar retrospectivo,
e de fato isso está longe de ser ou fácil ou possível para muitas pessoas;
mas mesmo quando eu decido fazer isso,
os olhares punitivistas, evitativos e sobretudo patologizantes me atravessavam como flechas num campo para a execução de traidores da pátria.
Penso, apesar disso, ou justamente por isso, que quanto mais críticas e autocríticas fazemos,
quanto mais olhamos de perto o que é isso que chamam de amor e de vida,
quanto mais questionamos o quanto as materialidade, as casualidades e as projeções constituem a existência tal qual conhecemos,
menos temos vontade de viver.
Essa não-vontade é legítima!
Ela vem do desencanto sobre algo que foi historicamente projetado e implantado,
mas que foi revelado num golpe de frustração que nos acerta em cheio,
que dói,
que dilacera,
que expõe nossas veias
e que sangram.
Mas que segue legítimo enquanto um desencanto!
Permitir-se o desencanto pela vida pode ser o ato mais revolucionário que uma pessoa pode realizar!
Somente após os desencantos com uma sociedade caótica é que inventamos outras formas de se encantar,
outros modos de ser;
quiçá encantos mais próximos do que somos e podemos ser.
Se não nos desencantamos com o racismo e com a branquitude não rompemos com o seu pacto genocida;
se não nos desencantamos com a cisgeneridade não perceberemos que ser Cis nunca foi uma opção de escolha, mas uma imposição escandalosamente silenciosa.
Enquanto não houver um desencanto com a colonização, seu ópio seguirá anestesiando mentes revolucionárias por desfazimento colonial.
Perder o encanto não é perder o medo,
mas pode ser a renúncia profunda da coragem, de uma coragem colonial;
desencantar-se é uma necessidade para que o conformismo imperial seja questionado e enfrentado.
Como disse Paul B. Preciado em seu livro “Um apartamento em Urano”, aqui também repito suas palavras:
“desejo que lhes falte a coragem. Desejo que vocês não tenham mais força para reproduzir a norma, que não tenham mais energia para fabricar a identidade, que percam a fé no que os seus documentos dizem sobre vocês. E uma vez perdida toda a sua coragem, frouxos de alegria, eu desejo que vocês inventem um modo de usar para seus corpos. Porque eu os amo, desejo-os fracos e desprezíveis. Pois é pela fragilidade que a revolução opera.”
[Paul B. Preciado. “Um apartamento em Urano – Crônicas de travessia”, CIA das Letras, 2020, p.142. ]
Como eu comentei certa vez aqui no blog, ao tentar suicídio, embora eu não tenha morrido fisicamente,
algumas partes de mim ficaram naquele ato.
A coragem ficou lá,
assim como parte do encanto se dissipou no ar;
para além da máscara de plástico que eu usei, algumas máscaras caíram naquele dia;
repito: a materialidade da vida ficou mais evidente em seu desencanto;
para algumas coisas, a apatia anterior ao ato ficou mais protusa, mais gritante, mais viva.
E não faço questão de renunciar esse eu emergente;
em vez disso, é com ele que me construo em mim,
e nisso que meu olhar sobre e para o mundo e as relações se tecem e se defazem.
Chega um ponto em que ser normal é ser agluém doente.
Com essa morte simbólica morreu também a pessoa que passivamente aceitava ocupar espaços descabidos;
por muito tempo, mesmo após o setembro, me perguntei se eu não estava exigindo demais;
me questiono se ser assim, supostamente com um coração de gelo, não é um erro,
uma falha na programação,
um desatino na minha arquitetura sentimental.
Foram e são necessárias muitas introspecções,
muitas olhadas para trás,
muitos retornos
e muita nudez emocional
para eu perceber que minha suposta frieza só existia se eu medisse o meu afeto pela régua cristã de uma sociedade neoliberal;
antes de me preciptar em aceitar a norma, precisei olhar para mim com mais carinho, ser para mim o que eu tanto quis ser para os outres.
Precisei olhar e me questionar na minha própria crueza antes de ceder ao Cistema mais uma vez.
“[…] ele não esqueceu de recordar a si mesmo, de tempos em tempos, que reflexões frias, mesmo as muito frias, são melhores do que decisões desesperadas.”
[Franz Kafka – “A metamorfose”]
só faz sentido eu me condenar por ser quem eu sou se eu estiver buscando apenas ser quem disseram que eu deveria ser.
resolvi acolher o mal-estar de ser eu;
decidi experimentar o bem-viver do que é ser como sou…
é uma travessia…
passo a passo,
caminho a caminho,
pouco a pouco.
E é nesse contexto que ser um quarto de despejo não é uma opção!
Não é justo para esse corpo que a sociedade tenta matar todos os dias e que por um instante não matou a si mesmo se ofereça como depósito de lixo e de utensílios mentais para quem não aprendeu a ser afetiva com corpos afetivos.
O despejismo não precisa ser uma condição determinista do comportamento. Mas digo que se ele pertence ao seu universo de ser e estar no mundo, eu me retiro do seu universo. Da mesma maneira que se me encontro nessa prática, quero dela me remover, quero inventar outros modos se estar com as pessoas.
Vamos tentar outros modos de viver!
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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Obrigado por esse diálogo com meu interior. Pelo repensar, aprofundar e compartilhar de tal vivência. Gratidão pelo disponibilidade de fazer seus leitores questionar os dias e as formas de sobreviver no mundo. Vamos viver!
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Muito obrigado pelo texto 💛Esse termo é perfeito. Obrigado pelo texto. Obrigado por contar sua vivência. Foi muita coisa. Muitos atravessamento a em comum e um baque seguido de alívio, ler tudo isso, cada parte, do início ao fim. Vamos tentar outras formas de viver 💛
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