“A única constante na vida é a mudança”. Eis aqui uma frase que guarda em si uma grande e profunda constatação do que é viver e do que é manter-se vivo. Vivemos uma constante sucessão de eventos que potencialmente podem nos modificar; às vezes lenta e gradualmente, às vezes com um salto de um contexto para o outro; mas sempre ocorre alguma mudança. Mudamos, inclusive, quando o desejo é permanecer na mesma situação. E o outrora contraditório se faz congruente com o sentido quando se pode perceber que mesmo quem não percebe a mudança está mudando. Não somos as mesmas pessoas de ontem, sequer a de minutos atrás – mudamos fisiologicamente, psicologicamente e socialmente. Tod@s mudamos! E já escrevi isso em outros tempos.
Quem se percebe em mudanças – sobretudo naquelas que lhes parecem boas -, geralmente se espanta com o que um dia já se viu; habitualmente se sente em um corpo estranho quando por alguma razão revisita seu eu antigo e percebe o quanto as atitudes foram transformadas e melhoradas em relação ao antigo modus operandi. E existe um “risco” que se sobrepõe a essas possíveis/prováveis mudanças. Há coisas que podem acontecer quando não se percebe o processo de transição. O maior risco é passar a ver seus fantasmas – aqueles que antecedem as mudanças – em todos os corpos que não o seu. Dito em outras palavras: corremos o risco de achar que por termos mudado em certa característica todas as demais pessoas também têm o dever de nos acompanhar nessas mudanças; pensamos, ingenuamente, que todes estão sob as mesmas condições psicossociais que nós. Nisso, vemos nossas antigas condições atuando em pessoas que por diversas razões não mudaram. E, pior que tudo isso, incomodamo-nos profundamente quando as pessoas não mudam conosco – na nossa “hora”. Mas é segredo que cada indivíduo tem o seu tempo, a sua condição favorável e o seu modo de transpor seus obstáculos? Quem é que tem o direito de exigir de outrem coisa alguma? Eu? Você? Nós?
Boa parte das mudanças chamadas comumente de desconstrução acontecem aos poucos, à base de intensas e interessantes combinações de fazer-se e desfazer-se em experiências. Estar em exposição a eventos e a fatores que nos incomodam ou que nos impelem a pensar melhor em nossos hábitos são situações que, também aos poucos, nos direcionam a uma alteração de comportamento. Acontece que, uma vez passado um certo processo, tende-se a esquecê-lo enquanto uma totalidade – valoriza-se mais o final que o todo. Ou seja, uma vez superada uma questão importante é possível não perceber quem fomos um dia e, então, passamos a crer erroneamente que sempre fomos desconstruídos e desconstruídas – e obviamente isso é uma ilusão.
Assim, tão importante quanto ter passado por uma mudança significativa na vida é preciso que olhemos para nós por completo e também para as outras pessoas, ao ponto de sabermos que todes tem condições de mudar, e poderão fazer isso caso desejem/possam/sejam tocadas, mas isso dentro um conjunto de acontecimentos sucessivos ou não. Quando desconsideramos tais questões, viramos pessoas mudadas, porém arrogantes e que não respeitam o tempo de transformação alheia. Às vezes esquecemos que não nascemos prontos e prontas.
- Se hoje não sou homofóbico; se hoje entendo a questão da minha orientação sexual e me vejo dentro da comunidade LGBTQIA+, preciso estar sempre me relembrando que ontem eu não era assim. Pelo contrário, eu nem me reconhecia muito bem; foi preciso uma série de desabamentos de muros para eu me enxergar como de fato sou – ou como penso que sou;
- Se tenho condições de olhar para a minha pele e para as minhas vicissitudes e me identificar enquanto um homem negro, afirmo que nem sempre foi dessa maneira. Já tive dúvidas de se eu era pardo, “moreno” ou “marrom claro” – como me chamavam na infância, ou se eu era negro… eu confundia todos os termos, e inevitavelmente me perdia neles. Cresci sem me ver enquanto um homem negro, sem saber que esse sou eu e que isso é lindo, belo, natural. Como posso hoje pensar que aqueles e aquelas que não se identificam com suas características e suas vivências são pessoas atrasadas? Como posso supor que “não se aceitam porque não querem”? Simplesmente não posso supor tal ideia! E nitidamente não devo supor nada disso!
- Nos dias de hoje eu critico a forma como os corpos são postos, conduzidos e tratados em sociedade; mas não fui assim sempre. Já acreditei em certas doutrinas que controlavam o meu corpo, meus desejos, minhas atitudes. Já me prendi a estereótipos que condicionam até hoje uma maneira exclusiva para homens serem e estarem no mundo, e que deve ser diferente daquelas para mulheres. Hoje não penso mais assim; ou melhor, luto constantemente para que esses pensamentos sejam reduzidos dia após dia. Levou tempo para eu ser quem sou, e levará ainda muito mais para eu deixar de ser esse eu e me formar outro sujeito, outro indivíduo, outra pessoa, enfim, alguém mais crítico. Quem é que não muda?
Em uma sociedade cujos modelos são brancos, heterossexuais, sexistas e com um aparelho controlador e condicionador potente que existem e que atuam muito antes de seus nascimentos, não se pode exigir que espontaneamente as pessoas olhem para si e que mudem de comportamento livremente, por escolha passiva. A propósito, liberdade e escolha são palavras perigosas, que carregam em si armadilhas e surpresas.
“Em um sistema que apresenta mecanismos capazes de, num conjunto complexo de ações e poderes, modelar pensamentos, comportamentos e ideias, qualquer prenúncio de liberdade esconde uma potencial armadilha. Se de fato existisse uma liberdade, ela seria no mínimo sobre a ilusão de ser livre.“
Fragmento do texto Uma estranha ideia de liberdade.
Assim, sempre que olharmos alguém ao nosso redor que carrega em si os fantasmas de quem fomos ontem, que não julguemos suas atitudes somente pelas suas atitudes. Que direito temos de condenar quem quer que seja? Não é melhor saber o que está por trás das ações? Lembrando que criticar aquilo que não conhecemos é tão ignorante quanto não saber de nada. Entretanto, não digo nem suponho que devamos ser complacentes com os erros, com as negligências e com os comportamentos danosos (como o racismo, o machismo, a homofobia, a intolerância religiosa e qualquer espécie de preconceito, discriminação e violência). Apenas sugiro que, antes de lançarmos nosso olhar de rejeição imediata, possamos ver que, se mudamos, outras pessoas [talvez] possam/queiram mudar. Quando damos as costas àqueles e àquelas que estão em seus processos particulares, podemos deixar de servir apoio e de ajuda, como amparo, como fonte de conhecimento e de transformação. Afinal de contas, será que – se é que mudamos – mudamos sozinhos e sozinhas? Ninguém, absolutamente ninguém nos serviu de propulsão? Não nos baseamos em nenhuma espécie de modelo/inspiração para percebemos que poderíamos mudar? Pense nessas perguntas e em suas respectivas respostas.
Mudar não é “apenas” mudar. Se possível, e se você conseguir, não aceite nenhuma forma de preconceito, discriminação e violência, mas não vire as costas sem antes tentar ajudar e mostrar – mesmo que em silêncio – que, como dizia Heráclito de Éfeso, “a única constante na vida é a mudança”.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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