Afirmações categóricas e generalizações tendem ao erro ou ao constrangimento; entretanto, algumas são tão evidentes que até cabe tentar uma declaração. Desse modo, e arriscando um palpite, digo que muito provavelmente todos os seres humanos mudam. Se na natureza a mudança é, além de conhecida, inegável, no que diz respeito ao Homo sapiens (tão parte da natureza quanto qualquer outro organismo vivo), pensa-se que suas mudanças são temporais – sentidas apenas a partir de acontecimentos históricos abruptos e disruptivos. Mas suspeito de que se engana quem assim pensa; é muito mais provável que estejamos em mudança o tempo todo. Mesmo quando queremos permanecer na mesma posição, estamos em mudança contínua.
Desde o indivíduo mais conservador ao mais liberal, todos buscam por um objetivo que evoca mudanças. O conservador espera que suas atitudes mantenham mais estáveis uma determinada crença, ideia e/ou certo comportamento tradicional. O liberal, por outro lado, busca conhecer novos meios de atuação, de expressão e de movimento para dar mais sentido à sua existência. Entretanto, ambos os modos de ser estão se adaptando ao meio em que vivem para que mantenham suas escolhas em voga. E, inevitavelmente, adaptar-se ao que quer que seja exige mudanças.
Há quem acredite que mudanças ocorrem apenas no plano visível, como em pessoas que emagrecem ou engordam, deixam os cabelos com outra forma e cor, ou em quem passa a adotar outro estilo de roupa ou de vida. Isso é algo tão simples que no máximo reflete uma mudança interior. Entretanto, quando encaramos os mecanismos de relacionamento humano e sua forma de existência com mais profundidade, percebemos que nossas mudanças são incessantes e em grande parte são nossas maiores desconhecidas.
Aquele indivíduo que nunca está satisfeito com o seu estado de existência, que busca conhecer cada vez mais culturas, que muda o seu modo de pensar e investiga sobre o máximo de eventos que pode, certamente é considerado um ser que, apesar de inconstante, e que não para quieto no lugar, “não muda nunca” – pois estar sempre buscando por novidades é algo constante, dizem. Curiosamente, uma pessoa conservadora, religiosa dogmática e que passa a vida inteira buscando por um pouco mais de conforto e de luxo também pode ser considerada “alguém que não muda nunca” – pois sempre foi ambiciosa. Entretanto, dizer que nem um nem outro não mudam nunca é bastante incoerente. Em ambos os casos, para permanecerem em suas “jornadas”, tais indivíduos precisam se modificar e se adaptar aos novos desafios. Acontece que poucos percebem que estão mudando – ou sendo mudados -, daí surgem as afirmações precipitadas.
Vivemos em uma sociedade volátil que se altera a cada minuto, com modificações às vezes estrondosas, às vezes sutis. Quem quer que seja o sobrevivente nessa estranha forma de existência deve se manter em constante mudança para que permaneça vivo. O simples fato de dizer que não fará mais nada em relação ao todo já é uma forma de mudança, que por usa vez exigirá outras mudanças a cada dia. Se eu disser que a partir de hoje não me incomodarei com a desigualdade social, que não alterarei o meu jeito de ser e que aceitarei tudo que me acontecer, certamente nesse momento que mais coisas serão modificadas dentro de mim – mesmo que eu não as perceba. Encarar a alienação de uma sociedade que se torna mais fútil e líquida a cada ano, mantendo-se para tanto inerte, exige o enrijecimento de nossa parte humana; observar a fome e a miséria que assolam o planeta e mesmo assim dizer que não fará nada por isso é um processo custoso, pois requer que nos transformemos por dentro em pedras – uma característica antropológica de nossa espécie é o afeto, negá-lo requer mudanças. Encarar o sofrimento de uma mulher que passa pela violência doméstica, silenciar-se diante da misoginia, da homofobia, do machismo e do racismo no intuito de se manter inalterado socialmente é um processo que decorre de inúmeras alterações psicológicas e socioafetivas. Nada nem ninguém está parado, tudo se altera – tudo se movimenta continuamente.
Assim, tomar a decisão de não se modificar ao longo do tempo é talvez a maior certeza de que haverá mudanças em si mesmo. Alguém que se diz inalterado com o passar dos anos certamente é alguém que a todo instante cria resistências psicológicas, barreiras sociais e/ou alguém que fortalece seus dogmas dia após dia para se manter “estável”. Ainda que deixemos de existir e que reste de nós apenas memórias construídas por outrem, essas mesmas memórias serão modificadas ao longo do tempo. Por exemplo, um mesmo livro, com palavras fixas e inalteradas, pode assumir diferentes significados se lido por pessoas diferentes; quando não, o mesmo livro se lido por uma mesma pessoa em diferentes fases de sua vida pode apresentar [e geralmente apresenta] uma nova interpretação – às vezes, bem distinta da anterior. O que mudou? Quem mudou? Por que mudou? É uma longa história. Só posso dizer que algo mudou. E seguirá mudando.
A título de mais analogias, podemos considerar a estabilidade térmica de um corpo material qualquer. Manter determinado corpo à uma temperatura constante, apesar do que possa parecer, não é sinônimo de ausência de mudanças; a perda de temperatura para o meio requer que um calor seja estabelecido de modo a repor a energia perdida. Esse comportamento termostático é constante, mas ele representa apenas o estado aparente do corpo; uma mudança muito mais sensível ocorre no mecanismo do sistema. E é essa alteração mais sensível que representa a mudança efetiva. Caso nada mudasse, ou o corpo perderia energia térmica, resfriando-se, ou seria aquecido indefinidamente – em qualquer que fosse o caso, estaria se modificando e não seria mais o mesmo à mesma temperatura.
Outro exemplo bastante ilustrativo do dia a dia é o conceito de aceleração. Quando se está dirigindo, você pode optar por manter constante a força do seu pé sobre o acelerador do veículo. Digamos que dessa forma o seu automóvel assuma uma aceleração média constante de 3 m/s². Apesar do termo “constante“, essa aceleração também não representa a ausência de mudança, uma vez que o seu automóvel estará aumentando a velocidade em 3 metros por segundo a cada um segundo, logo, ele estará mudando de velocidade.
Advém dessas suposições que também é importante estabelecermos o que estamos observando antes de dizer que algo está ou não passando por mudanças. Tendemos a eleger as características aparentemente mais estáveis para nos servirem de consolo e confiança, uma vez que perceber a mudança é algo não muito agradável para a maioria. Coisas ou seres grandiosos e magníficos tendem a ser representadas como “eternamente imutáveis” e com propósitos fixos e rígidos. Uma personalidade que transmite confiança é geralmente aquela que se mostra invariável em seus propósitos e em suas falas – alguém que muda de argumentação e mostra-se em movimento geralmente recebe pouco crédito da massa carente de ideias. Dizem que bom mesmo é quem sempre foi e sempre será o mesmo – ontem, hoje e eternamente. Todavia, esse ser, ou essa coisa, nunca existiu senão na imaginação popular. Até mesmo sua própria manutenção no contexto cultural requer atualizações frequentes ao longo da história; logo, já não é a mesma desde seu surgimento no imaginário coletivo.
Quando digo que é difícil mudar – como já aconteceu em outros textos – essa “mudança” diz respeito ao modo de observarmos a existência das coisas e da sociedade e interagirmos conscientemente com elas. Mas eu não seria ingênuo em acreditar que uma pessoa pode escolher não mudar. A própria história da humanidade poderia ser encarada como constante se a analisássemos meramente do ponto de vista do comportamento factual e superficial: Civilizações “Primitivas”, Cidades-Estado, Impérios e Nações sempre buscaram manter seus privilégios e dominar os menos favorecidos em troca de status, luxo e segurança. Isso quase sempre foi assim – e ainda o é. O que não significa dizer que não houve nem há mudanças. Pelo contrário, alterações absurdas ocorreram e ocorrem para que esse mesmo esquema de injustiças e dominação continue exercendo seus poderes – com ainda mais sofisticação e eficiência.
Temer a mudança, por si só, é temer o inevitável. O mais sensato a ser feito é, primeiramente, compreender o que, como e porque algo se modifica; após isso, é interessante considerar os inúmeros fatores envolvidos nessa mudança e depreender suas consequências. Não adianta querer ficar parado, isso não acontecerá; independentemente do que façamos, se parados ou em movimento, as coisas seguirão mudando. Quer seja para atingir outro estado, quer seja para manter-se no estado atual, tudo se modifica em maior ou em menor intensidade.
Finalizando, quero relembrar-te das palavras de Heráclito, de Éfeso, ditas há séculos: “Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta se dispersa e se recolhe, vem e vai.” Dizendo de outra forma, “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem“. Eu mudo, Tu mudas, Ele/a muda – tudo muda; tod@s mudamos! Não tenha medo de mudar, tema não saber o que está mudando em você sem que você ao menos o perceba.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.[ Luís Vaz de Camões – (?)-1580 ]
#VocêJáParouParaPensar?
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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