[ NOTA INTRODUTÓRIA ]

Este texto deriva de outro em escrito em 25 de agosto de 2019, que por sua vez é a ampliação de um texto que escrevi há um bom tempo, mas postado aqui no Blog em dezembro de 2017. Caso queira ver como as coisas se modificam de um período para o outro em nossas breves vidas [especificamente na minha], sugiro que você leia o texto chamado Deus, as Religiões, as Igrejas e o Egoísmo (de 2017), depois o de 2019 e os compare com o que lerá a partir daqui. E quando digo que muda é porque muda mesmo! Todavia, não preferir uma leitura desse texto, independentemente dos demais, isso não afetará a compreensão do que tenho a dizer.

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A sociedade não se apressará em nos conceder autoridade. Ela tem de nos oferecer resistência, pois nos comportamos criticamente em relação a ela; demonstramo-lhe que ela mesma tem grande participação no surgimento das neuroses. Assim como transformamos o indivíduo em nosso inimigo, desvelando o que nele se achava reprimido, também a sociedade não pode responder com simpatia ao implacável desnudamento de seus danos e deficiências; pelo fato de destruirmos ilusões, acusam-nos de pôr em perigo os ideais.

Sigmund Freud; 1856-1939

Primeiro, os seres humanos criaram deuses; depois, foi preciso institucionalizar essa invenção. Se visto pela ótica ocidental de povo, um deus muito liberal não traria muita credibilidade, pois não seria facilmente relacionado a alguma forma eficiente de poder; ao menos não a priori. Pelo contrário, assim como disse Freud na frase que abre essa dissertação, “a sociedade não se apressará em nos conceder autoridade”. E como parte de um construto social, que se entremeia na formação cultural, a criação de um Deus serve-se, ao grupamento humano, de dominação; como um mecanismo que se pretende político, além de “espiritual”; mas que também se torna religioso a partir do momento em que se institucionaliza simbolicamente em um conceito e ao redor do qual se dispõem as ferramentas que participam da construção e da manutenção das neuroses.

Em uma avaliação que percorre o tempo, vê-se que, como um mecanismo chave nas relações de poder, fundaram-se as religiões – algumas derivadas de um ponto em comum, outras nem tanto – mas todas do imaginário fantástico do Homo sapiens, pelo menos, até que provem o contrário. Além de que, essa construção primeva aconteceu possivelmente por permitir trazer para perto de um grupo a ideia de que respostas complexas poderiam, então, ser acessadas – mas respostas que constituiriam um conjunto de saber que, por sua vez, delinearia comportamentos, institucionalizaria e instrumentalizaria um certo modus operandi do conjunto social, bem como suscitaria a construção de verdades, muitas das quais se pretendiam absolutas. Assim, sentimento de consolo e de afago diante de uma perda significativa, seja de um ente querido vítima de uma doença ou de um território destruído em guerras; a confirmação de que depois da morte o sujeito terá  a possibilidade de não passar por sofrimentos; a resposta rápida a qualquer evento; alguém que está o tempo todo te vigiando “cuidadosamente” e “zelando” pelo bem-estar individual e coletivo; tudo isso serve de especulações para supor uma resistência significativa do pensamento religioso a tudo que pretenda criticá-lo, ou questioná-lo.

Mentes religiosas são capazes de criar e de desfazer conceitos conforme o período histórico mostrar-se mais apropriado. Opositores sempre houveram, que apresentavam dados contrários ao dogmatismo. Às vezes eram ouvidos, mas não porque os dogmáticos lhes deram transferiram a razão (ou a verdade), mas porque as evidências não poderiam ser vencidas pela experiência da fé, mas também não a destruiria por completo. Entretanto, ainda assim não se pode assegurar que o dogmatismo foi vencido – muito longe disso. Se Ptolomeu foi desqualificado quando Copérnico, Galileu e Kepler “moveram” a Terra para um ponto remoto no Universo e ela deixou de ser o centro do cosmos, foi porque alguém ousou contrariar as vozes da Igreja e propôs o então contra-intuitivo conceito de heliocentrismo. De toda forma, o pensamento religioso é resistente o bastante para simplesmente desparecer diante de evidências científicas de um dia para o outro; pode-se até sentir-se abalado, mas não se pretende vencido.

Nesse sentido, similaridades com o pensamento religioso estão por toda parte: o cerne deles é a crença de que se pode explicar o inexplicável e dar respostas baseadas em meras convicções – ainda que estas convicções contrariem uma série de experimentos e que estudos provem o seu contrário. Isso diz respeito, em resumo, a soberania do pensamento dogmático. E nesse contexto, surge um ponto importante: uma vez que a soberania dogmática se sustenta sob pilares como a dominação do estado psicológico de seus apoiadores (ou subservientes), sobre o medo e sobre intrincadas relações de poder, e sobretudo sobre o direito de posse do corpo humano, cabe pensar sobre o que de fato trata-se quando se diz sobre soberania. Uma das possíveis interpretações é a via de pensamento traçada por Achille Mbembe, quando em seu ensaio chamado “Necropolítica” ele afirma que sua preocupação é “com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações’. Tais formas da soberania estão longe de ser um pedaço de insanidade prodigiosa ou uma expressão de alguma ruptura entre os impulsos e interesses do corpo e da mente”. Aqui, a principal concordância com Mbembe se propaga para o olhar de controle institucional e sociopolítico que promove, entre outros aspectos, a manutenção de uma ordem religiosa-dogmática que estende suas redes relacionais inclusive aos limites entre a vida e a morte, e usa o pensamento como trilho sobre os quais deslizam seus danos e suas deficiências.

O poder sobre os corpos e sobre o direito de existir mostra-se evidente e eventos históricos, quando serviram de instrumento eugênicos, responsáveis por forçar à catequização nativos americanos sem-número, com direito à morte, caso recusassem a nova crença; foi pela expansão mercantil, mas também religiosa, que navegações saíram ávidas em busca de novos fiéis e de mercadorias – mercantilizando a vida de africanos e violentamente arrancando-os de suas construções subjetivas primárias, desenraizando-os de seu espaço de autonomia e autoridade, e dando-lhes condições extremas de sofrimentos que se estendem até os dias atuais. As chamas dessa soberania que se sustenta sobre a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações permanecem acesas.

Destaca-se, aqui, que pensamentos dogmáticos estão presentes na construção da infância humana, pois é a forma como o raciocínio primitivo de uma criança funciona para compreender um mundo novo, cheio de potenciais descobertas que lhes serve de grilhão. Logo que novas ferramentas interpretativas surgem, opta-se pela que explica melhor os fenômenos do existir – o caráter questionador e investigativo surge tão logo quando aumenta a disponibilidade de códigos conhecidos e assimiláveis pelas crianças; testar possibilidades e descartar aquelas não pertinentes é o passo seguinte. Todavia, pensamentos que veneram o dogmatismo insistem por infantilizar – ou por manter infantil – quem dele faz uso; mas infantiliza, congelando o estado de desenvolvimento do pensamento crítico. Crianças vivem perguntando os porquês das coisas, porém, não raras são as que crescem em lares e em sociedades cujas respostas são sempre “Porque sim!”.

Para não cometer injustiças, talvez seja válido dizer que não necessariamente todas as pessoas dogmáticas sejam assim porque acordaram pela manhã e decidiram praticar o dogmatismo como estilo de vida. Mais honesto seria considerar que, dada a sutileza desse pensamento e o fato de sua zona de conforto ser grande o suficiente para abrigar as necessidades básicas do ser humano – diga-se, encontrar respostas para suas questões existenciais -, pessoas seguem o dogmatismo porque nele a parte mais complexa do comportamento é repetir os atos – ritualizá-los. Dessa maneira, é como se fosse uma grande redoma de vidro que abriga as mais íntimas necessidades – iluminadas por uma luz artificial, criadas pelo imaginário humano, mas creditadas como sendo todas as nossas necessidades. Os atos são compulsórios e adestradores, ademais neuróticos. Não é necessário questioná-los com precisão, tão pouco se permite o falseamento de suas ideias, mas devem ser repetidamente executados. Um modelo experimental, metodologias e critérios modificáveis não necessariamente fazem parte de um escopo dogmático – a menos que o método seja o mais subjetivo possível e que seu manual seja justamente aquele que deu origem ao dogmatismo – no caso das religiões, os próprios livros sagrados. Cria-se, assim, uma espécie de admoestação lenta e persistente, que aos poucos domestica e modela corpos e comportamentos. Do ponto de vista foucaultiano, acontece a docilização dos corpos.

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Dessa maneira, o corpo religioso é um corpo docilizado. Ideias que figuram a salvação de uma alma na verdade estão engendradas no mecanismo de manipulação, normalização e categorização do corpo. Para não ser descabido dizer que há um interesse bem articulado e com isso se aproximar de uma ideia de conspiração, cabe dizer que as práticas cotidianas passam a ser institucionalizadas sob o julgamento de um conceito imaginário soberano, como “Deus”.

A prática religiosa tende a fortalecer uma subjetividade a partir dos exemplos, exames e punições; eventos que acontecem sob constante vigilância. O sujeito é assujeitado num processo também histórico. Seja por uma narrativa mitológica, seja por crenças nacionalistas que fortalecem o Estado, constrói-se um arcabouço de experiências que são compartilhadas como numa trama cultural. A cada ato que adestra, cria-se uma norma, e a cada norma, um novo ato pode surgir. A normatividade interfere no comportamento ao passo que o comportamento gera sobre ela uma interferência, como num processo autocalítico. A cada norma, algo ou alguém é excluído do meio por se mostrar fora dos requisitos: obediência, docilidade e ato reflexo do sistema de normas. Uma normalização tem este objetivo: nivelar todos em um parâmetro desejável e, se isso não for possível, penalizar e excluir os pontos fora da curva.

A instauração de um poder que controla o modo como cada indivíduo deve se portar tanto nos templos quanto fora deles – seja pela escolha das roupas, pelo uso das palavras, pelo tom de voz, pelos acordos sociais ou pelo uso de seus corpos – diz muito sobre uma prática disciplinadora cujo resultado é a constituição de uma docilidade do corpo do sujeito que se presta a servir um soberano, ainda que para isso seja necessário dar tudo de si, inclusive o seu próprio objeto de representação: o corpo.

A ideia de que o corpo é um dos principais, senão o principal, objeto de manejo de crenças religiosas não parece muito evidente aos seguidores destas. Possivelmente porque tem-se a própria sensibilidade reduzida a tal ponto que não se sente tal qual um sujeito doado ou apropriado por todo um sistema de normatividades e doutrinas que, lenta e gradualmente, dão ao portador biológico do corpo a falsa sensação de que por sua livre e espontânea vontade cada atitude é realizada. Contextualiza-se a posse e legitima-se a dominação.

Pintar ou não o corpo; furar ou não a orelha; retirar os manter os pelos, são exemplos bem superficiais de coisas que afetam diretamente o direito de posse de si sobre si mesmo. Porém, quando se eleva a prática dessas atitudes para um significado contextualmente religioso, no qual o indivíduo torna-se produto e posse de um ser impalpável e improvável, não fica tão claro perceber que na verdade o corpo que se supõe do sujeito não lhe pertence, mas é manipulado por uma ideia (que nem é sua de fato). Justamente no silêncio e na baixa percepção que ocorre a sabotagem. Docilizar o corpo é fazer uma cessão de si, é vender-se sem pagamento e sujeitar-se sem ser sujeito de si – assujeitar-se. Entender o quanto se pode fazer com o corpo é apenas um passo para compreender o sistema de poderes, vigilância e punição que estão amplamente envolvidos no campo religioso. Negar isso é de uma ingenuidade tamanha que equivaleria dizer que temos total liberdade sobre nossas vidas. Caso isso aconteça e haja essa crença de uma liberdade incondicional, dir-se-ia que o pensamento dogmático está nas redondezas das ideias, e não em suas entranhas. Se essa liberdade significa uma transformação de um corpo material em um incorruptível, então o caso é bem mais complexo.

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Por fim, poderia até surgir um questionamento, dizendo que essa docilização do corpo e o dogmatismo não são exclusividades da Religião. E esse é um questionamento válido! A religião existe não enquanto uma instituição isolada no tempo e no espaço. Ela atua política, social e culturalmente em diferentes grupos humanos. Logo, seus traços são observados em diferentes complexos da existência do grupo de Homo sapiens enquanto humanidade. Todavia, dizer mais de suas características nesse contexto específico torna mais pontual este ensaio. Como o pensamento dogmático está intrinsecamente dentro do pensamento religioso, avaliar suas consequências é uma sugestão que se faz aqui – além de ser o principal intuito justamente o de levantar questões sobre esse comportamento. Repostas prontas para isso não são prometidas; mas fazer perguntas, sim, é a ideia. E, nitidamente, antes de perguntar, é preciso observar o que está sendo feito para que as dúvidas surjam com mais qualidade. Pensar em autoridade, soberania, resistência e em críticas ao modelo social vigente é, sem dúvidas, pôr em perigo os ideais contemporâneos.

vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem usada para compor a capa desse texto foi obtida aqui.