Ser e estar no mundo não é nem uma habilidade inata nem um ato heróico per se. Apenas é. Estamos nesse mundo; e enquanto essa estadia acontece, enquanto ela se estende, somos e participamos do grande ato que diz sobre.viver. Existir, enquanto um ato que instaura a vida, não é em si uma escolha – nascemos para além de uma escolha que inclue o indivíduo nascente; com certeza não é uma escolha nossa; é apenas um fato. Talvez, ou até certamente, o ato de permanecer em vida seja uma parte bem pequena de uma escolha que fazemos dia a dia – a vida é um pensamento solto. Mesmo assim, se soubéssemos de quem é o nosso corpo não afirmaríamos com tanto fervor que de fato escolhemos viver ou não. Por outro lado, embora não seja sobre escolher estar ou não em vida, algumas coisas nos atravessam e nos constituem enquanto seres que sentem – a vida, ainda assim, é um sopro, respire com calma. Penso, logo, que poucas coisas são tão importantes, tanto quanto difícies de se viver nossas expressões mais sensíveis; poucas coisas são tão complexas quanto, numa sociedade neoliberal, viver e assumir as nossas vulnerabilidades.

Segundo o dicionário online Michaellis, vulnerabilidade está associada ao sentido de fragilidade:

vulnerabilidade*
vul·ne·ra·bi·li·da·de
sf
1 Qualidade ou estado do que é vulnerável.
2 Suscetibilidade de ser ferido ou atingido por uma doença; fragilidade.
3 Característica de algo que é sujeito a críticas por apresentar falhas ou incoerências; fragilidade.

Para além da concepção popular de que a vulnerabildiade é a demonstraçã de nossas fraquezas, penso que se trata de uma habilidade de resistir aos demasiados ataques de imagens que nos atormentam. Dito de outro modo, em vez de pensar que se vulnerável é sinônimo de não ter condições de lidar com suas dificuldades internas e, por isso, está sempre expondo seus defeitos e pontos fracos, prefiro dizer que é justamente o contrário: ser permitir estar vulnerável é permitir-se mostrar sua vontade e seus sentimentos sensíveis num mundo que nos bombardeia com vontades externas e pré-moldadas.

Talvez a grande dificuldade em se mostrar vulnerável passe por vias que, apesar de fazerem parte de nossas subjetivades em sua profundeza e superfície, estão contaminadas e são influenciadas pelo ideal de vida propagado pelo neoliberalismo de nossa sociedade capitalizada. Em um mundo que transforma em troféu cada gesto de coragem e que elenca como vencedora a pessoa que resiste mais tempo pendurada na cruz sem demonstrar sequer seu desconforto de estar ali, qualquer sinônimo de fragilidade é logo visto com deboche, desdém e reprovação. A menos que o sofrimento seja ressignificado como sendo um ato de coragem, permitir mostrar suas dores será sempre um anúncio de sua derrota enquanto ser humano.

Numa sociedade que assalta o sentido de individualidade e que em seu lugar instaura o individualismo, sentir seus próprio sentimento se torna paradoxalmente inapropriado. Ao mesmo tempo que essa socidade do limite deposita no indivíduo todas as responsabilidades por suas escolhas e dele cobra resultados sempre “progressivos” e “positivos”, esse mesmo indivíduo se vê na proibição de se revelar tal como se sente, caso se sinta diferente do que postula essa sociedade. Esse modelo de sociedade postula que sempre devemos ter força, resistência, progresso, sucesso, infalibilidade, resiliência e determinação. No entanto, não afirma exatamente como cada uma dessas ideias poderiam ser plurais em seus sentidos. Na verdade, cada palava dessa apresenta em si um teor que remete sempre à ideia de melhoramento: é preciso se tornar cada vez mais um ser humano melhor, e cada vez menos alguém que questione suas vontades; devemos nos tornar sempre a melhor versão de um “eu” que existiu no ontem. Ainda assim, esse “eu” precisa ser capaz de mostrar somente o que lhe é dito como bom no amanhã!

“[..] o modelo socioeconômico hegemônico nos últimos quarenta anos, a saber, o neoliberalismo e sua psicologia implícita, pode ser compreendido como fator causal importante para transformações profundas na configuração das categorias clínicas a partir, sobretudo, do advento do DSM III, no final da década de setenta. Transformações tais como: o desaparecimento das neuroses como quadro compreensivo principal para a determinação do sofrimento psíquico, a individualização das depressões, a ascensão das patologias narcísicas e borderlines, a organização do campo das antigas psicoses, o abandono de perspectivas etiológicas sobre as categorias clínicas, assim como a individualização funcional das mesmas e a recusa de descrições estruturais podem ser analisadas como fenômenos convergentes ligados, entre outras coisas, ao impacto da circulação de valores próprios à psicologia implícita de um modelo socioeconômico então em ascensão no mundo ocidental, a saber, o neoliberalismo.” (Coelho, B. M., Smid, D. & Ambra, P.)

Seguir os passos dessa exigência neoliberal é, entre muitas outras coisas, seguir os passos de um apagamento emocional; é andar no sentido de despir-se de si mesme para vestir as armaduras para uma guerra contra nossa existência subjetiva. Em um sistema social que faz chacota de quem se pronuncia em suas emoções, e o qual considera emocionada a pessoa que declara o que sente logo que sente, qualquer prenúncio de vulnerabildiade é um alerta de um “problema” a ser corrigido.

Seria exagerado desejar e se movimentar no sentido da ação para possamos nos mostrar como somos sem temer tanto o que as pessoas pensarão quando nos descobrirem? Penso que podemos, sim, ser e estar vulneráveis; que podemos retirar nossas armaduras e nossas capas adquiridas por longos períodos de adestramento e deixarmos a nossa pele respirar. Se estar vulnerável é a habilidade de expor a nossa pele para que ela seja tocada, e ao ser tocada seja também sentida, que ao menos tentemos o ato. É verdade que assumimos várias lentes de interpetação do mundo; utilizamos diversos filtros que nos permitem ver e entender a realidade que se mescla à nossa fantasia. No entanto, embora alguns filtros sejam de fato parte de nós, nem todos nos definem. Alguns filtros constróem o “sou eu”, enquanto outros “estão em mim”.

Ao expormos a nossa pele e ao nos tornarmos vulneráveis, podemos correr mais riscos de sentir a realidade com mais força e impacto. Da mesma maneira, ao fazerms isso, suas agulhadas, suas facadas e seus arranhões poderão ser sentidos com mais intensidade. Mas será mesmo que nossas armaduras nos protegem das dores que sentimos ao negar a vulnerabilidade? Será que nos vestir de capas e mais capas nos torna imunes às violências que enfrentamos diariamente? A ave que vive numa gaiola com comida, “espaço” seguro e abrigo da chuva e do sol está vivendo mais e melhor que aquelas soltas e sujeitas aos intempéries da vida? Quiçá a ave que voa fora da gaiola tenha mais chances de ser atingida por alguém que a caçará ou até seja morta por algum predador – são eventos dentro do conjunto de possibilidades da existência. Mas aquela ave que vive em sua gaiola não estará menos morta a cada dia que se supõe viva – com a diferença de que a sua morte se dá lenta e gradualemente, a sua atrofia não é percebida de imediato, o que não significa que não aconteça; suas asas são inutilizadas dia a dia à medida que o sujeit se convence de que elas são desnecessárias. Mas curiosamente nada disso é chamado de morte. Mesmo o seu canto de dor, que clama por liberdade, é ressignificado e chamado de alegria. E ao nos convencermos de que é liberdade e felicidade o grito de dor e de agonia que emitimos, nem a pior das prisões será atordoadora o bastante para nos dizer que não somos dali. Se usamos um parâmetro que não é sobre nós para nomear e julgar quem somos, jamais seremos livres, jamais nos aceitaremos, jamais olharemos para a realidade como um protesto ao cárcere voluntário.

Apesar das espessas camadas adicionadas ao nosso “eu”, as espadas do consumismo, as navalhas do capitalismo e os aguilhões da “produtivdade a qualquer custo” penetram e rasgam a nossa pele, pois as mesmas armaduras que são vendidas como proteção contra a autenticidade e contra a nossa sinceridade são projetadas para serem tranpassadas pelas ferramentas do próprio sistema. Essas ferramentas tem por objetivo adestrar pela dor, pela culpa da não-produtividade excessiva, pela disciplina e pela docilização dos corpo; se você desvia seus passos de um percurso que disseram ser o ideal, as lanças te atingirão. Na esperança de tratar a ferida, te dão anestésicos, opioides, calmantes, remédios e mais remédios, para que você não tenha o ímpeto de se revoltar. Se você faz uma queixa, em troca te medicam. Na cultura da patologização, o seu silêncio é mais precioso que o seu grito de descobrimento de si.

Não por acaso, a habilidade de ser vulnerável não está contida nos best seller, não é ensinada na catequeze, não é valorizada na cultura tradicional – ou, ao menos não explicitamente em nenhuma delas. Creio ser a vulnerabilização a maior das revoluções afetivas que, na melhor das hipóteses, está em vias de acontecimento. Algumas fagulhas a anunciam, mas ela ainda não recebeu atenção significativa; a arte, tal como a poesia, anunciam esse lugar de despir-se para ser em si; mas ainda não é algo valorizado. A ciência, para além de toda a sua importãncia, tem sequestrado o direito ao lúdico, tem descapacitado o nosso olhar simbólico e tem secado os tinteiros que escreviam suas revoltas. As religiões, sobretudo as monoteístas, têm tirado a liberdade da experiência ampliada sobre a própria pessoa, têm cerceado e punido a diversidade sexual e o poder-sentir do corpo; os nacionalismos têm contruído fronteiras invisíveis que categorizam e classificam pessoas a partir da cor da pele, do idioma, da riqueza e da sua origem. Cada vez mais que a globalização se amplia, cada vez mais esses componentes de segregação buscam um monopólio. “Igualdade” tem sido cada vez mais o lema. Mas igualar pode ser sinônimo de eliminar a diferença, em vez de permitir que elas coexistam. E, nesse jogo todo, a vulnerabilidade é de pronto cerceada, aprisionada, marcada como contaminante, pois ser vulnerável é mostra-se em sua diferença e singularidade, é ser alguém fora da massa homogênea e estereotipada de ser humano; é anunciar que é possível não ser igual, é denunciar o cistema.

Portanto, já que o preço será o risco de sentir dores, já que expor-se é mostrar-se como potencial alvo, quero poder ser o mais próximo do que imagino que sou. Quero declamar quando e o quanto gosto de algo ou de alguém; quero poder sentir o que a situação tem a me propôr; que aceitar o convite para flertar com o acaso, com o desconhecido; mas quero também rejeitar aqueles convites que todes dizem ser o espetáculo das massas… quero correr o risco de dizer não às portas que o sistema diz ser o meu progresso profissiional e me permitir não estar onde todes dizem ser o melhor dos mundo. Quero poder errar mais sem me condenar por isso; quero poder encontrar aquele lugar em que o erro não me declara para sempre incapaz. [Quando você não é uma pessoa branca, quando suas origem não são de classe alta, e quando o seu gênero não é o cis-conforme, errar nem sempre é uma opção.] Ainda assim, quero poder errar. Então, se estar vulnerável é estar em erro, esse é o lugar que quero habitar, o da vulnerabilização.

Quero conversas que ultrapassem as bordas da medicridade, aquelas que perpassam a superfícies das pessoas e que penetam em suas subjetividades, que fale de suas alegrias, vontades e anseios, mas que também diga sobre seus medos, traumas, terrores e inseguranças; quero conversas des.cubram o pano que cobre o desejo de aparecer, que sejam revelados porque encontraram segurança, carinho e abraço.

Também quero habitar lugares complexos, quero poder transitar por ideias que não encontram espaço em um mundo apressado; quero olhar em olhos que brilham quando falam de suas profundidades e de seus desejos mais íntimos; quero passear onde estão os corações que transbordam o desejo e que, nem que seja num espaço limitado, porém acolhedor e aconchegante, permitam-se o direito de extra.vazar as emoções. Quero ter menos medo de dizer meus sentimentos. Sabe aquele medo de dizer suas intimidades indizíveis e logo receber uma intervenção da polícia afetiva, que pretende multar que se mostra demais, e que prende e tortura que diz coisas que são lidas como frágeis? Que me libertar desse medo estratégico utilizado para capturar pessoas emocionadas e emocionantes. Quero me emocionar!

Que possamos, então, desejar cada vez menos as fortalezas de uma emoção feita de pedras e que nos permitamos a fluidez dos rios de afetos; que desejemos cada vez menos construir um mundo feito de e para pessoas corajosas e passemos a habitar universos de quem se deixar errar ao tentar ser quem é. Na fábrica de adestramento, que não ocupemos as esteiras que nos destina às caixas, mas que sejamos as peças com “defeitos” que não perticiparão das prateleiras do mercado de seres humanos iguais e ananimados. Que a nossa ânsia por enquadramento compulsório seja aos poucos substituída por uma fagulha de ser como somos.

Os desafios disso tudo são enormes. Não porque não existam caminhos para acolhermos nossas emoções em suas diversas expressões, mas porque talvez nunca tenhamos conhecido o que tem para além da doutrina que nos disseram ser o viver. De tanto sermos ensinades a adorar e seguir um modelo patético e monótono de viver, temos medo de olhar para algo que se apresente muito atraente, porém novo, pois disseram que o que não reflete as imagens de um cistema coercitivo só pode ser uma criatura que quer nos devorar; e ao fugirmos dessas imagens e ao permanecermos somente naquelas que nos adestram somos devorades parte por parte, osso por osso, pele por pele. Mas se esse é o preço de ser quem sou, se essa é uma das possibilidades de consequências de ser vulnerável, estou ciente e quero continuar. No fundo, pode até ser uma utopia; de fato, pode ser um projeto de ousadia fantasiosa. Mas também não deixo de acreditar que a utopia é a maior inimiga de um sistema de normas rígidas e controladoras, pois ela empresta o fôlego para vivermos, as pernas para nos movimentar, e a imaginação e fantasia para sonharmos. Que naturalizemos e sofitiquemos a vulner[h]abilidade!

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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