Hoje começarei esse texto sem aquela boa introdução contextualizada que sempre faço – deixarei isso para depois. Dessa vez, começarei “com tudo!” E prepare-se para uma longa jornada!

[ PARTE I ]

Primeiramente, eu gostaria de saber se você é ou conhece algum homem que diz coisas como:

  1. “Eu até ajudo nos serviços domésticos”;
  2. “Ontem eu até ajudei a minha esposa a cozinhar”;
  3. “Eu até troco a fralda do bebê de vez em quando”;
  4. “Eu até sei lavar roupas”;
  5. “Na hora de pagar a conta, nenhuma mulher é feminista”;
  6. “Mulher minha é minha, eu sou do mundo”;
  7. “Mulher minha não vai para a faculdade”;
  8. “Não gosto de mulher com filhos”;
  9. “Ué, mas mulher também tem que gozar?”;
  10. ” Mulher e carro, quanto menos rodados, melhor”;
  11. “E aí, cara, está de babá hoje?”;
  12. “Queria eu ser sustentado pela minha mulher”;

[ PARTE II ]

Eu gostaria de saber ainda mais: você é ou conhece alguém que fala coisas como:

  1. “Essa mulher, usando essa roupa, só pode estar se oferecendo”
  2. “Você é uma mocinha. Aprenda a sentar”;
  3. “Feche as pernas. Senta direito!”;
  4. “Menina não brinca de luta”;
  5. “Menina não grita”;
  6. “Você é uma princesa”;
  7. “Já sabe cozinhar, já pode se casar!”;
  8. “Por que você tá brava? É TPM?”;
  9. “Mulher com pelo parece um homem”;
  10. “Vestido curto demais. Tá pedindo…”;
  11. “Trocou uma de 40 por duas de 20”;
  12. “Pra ficar bonita, mulher tem que sofrer”;
  13. “Mulher no volante, perigo constante”;
  14. “A única coisa que você pilota bem é fogão”;
  15. “Mulher não gosta de homem; gosta de dinheiro”;
  16. “Uma mulher só é completa quando tem filhos”;
  17. “Se acabou depois dos filhos”;
  18. “Tá gorda demais, ninguém vai querer casar com você”;
  19. “Tá magra demais, homem gosta de carne para apertar”;
  20. “Não corte o cabelo! Eu prefiro do jeito que está”;
  21. “Por que você não corta esse cabelo, está feia!”;
  22. “É muito bonita pra ser inteligente”;
  23. “Mulher de ‘boca suja’ é horrível”;
  24. “Muito fresca”;
  25. “Muito bruta para uma mulher”;
  26. “Mulher age com emoção e não com a razão”;
  27. “Mulher não sabe jogar futebol”;
  28. “Mulher é muito problemática”;
  29. “Mulher tem que se cuidar, focar na aparência”;
  30. “Não existe mulher feia, existe mulher pobre”;
  31. “Mulher que responde o marido está pedindo para ser abandonada”;
  32. “Mulher tem que agradar o marido, senão fica solteira”;
  33. “Quer arrumar um homem bonito? Vista-se como uma princesa!”;
  34. “Homens só precisam de duas coisas para serem felizes: barriga cheia e ‘saco’ vazio”;
  35. “Não questionar o marido é uma forma de respeitá-lo”;
  36. “Ela fica o dia inteiro em casa sem fazer nada, tem a obrigação de deixar a casa em ordem”;
  37. “Mulher é tudo fofoqueira”;
  38. “Mulher que não dá assistência, abre concorrência”.

[ PARTE III ]

Você já leu e/ou propagou algo deste tipo ao longo da sua vida?:

  1. “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” (Gênesis 3:16)
  2. “A feiticeira não deixarás viver.” (Êxodo 22:18)
  3. “Mas a mulher, quando tiver fluxo, e o seu fluxo de sangue estiver na sua carne, estará sete dias na sua separação, e qualquer que a tocar, será imundo até à tarde. E tudo aquilo sobre o que ela se deitar durante a sua separação, será imundo; e tudo sobre o que se assentar, será imundo.” (Levítico 15:19,20)
  4. “E se, com efeito, qualquer homem se deitar com ela, e a sua imundícia estiver sobre ele, imundo será por sete dias; também toda a cama, sobre que se deitar, será imunda.” (Levítico 15:24)
  5. E quando a filha de um sacerdote começar a prostituir-se, profana a seu pai; com fogo será queimada.(Levítico 21:9)
  6. “Se for a tua avaliação de um homem, da idade de vinte anos até a idade de sessenta, será a tua avaliação de cinqüenta siclos de prata, segundo o siclo do santuário. Porém, se for mulher, a tua avaliação será de trinta siclos.” (Levítico 27:3,4)
  7. “E falarás aos filhos de Israel, dizendo: Quando alguém morrer e não tiver filho, então fareis passar a sua herança à sua filha. E, se não tiver filha, então a sua herança dareis a seus irmãos.” (Números 27:8,9)
  8. “Não haverá traje de homem na mulher, e nem vestirá o homem roupa de mulher; porque, qualquer que faz isto, abominação é ao Senhor teu Deus.” – (Deuteronômio 22:5)
  9. “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” (Salmos 51:5)
  10. “A mulher louca é alvoroçadora; é simples e nada sabe.” (Provérbios 9:13)
  11. “Não dês às mulheres a tua força, nem os teus caminhos ao que destrói os reis.” (Provérbios 31:3)
  12. “E comprei-a para mim por quinze peças de prata, e um ômer, e meio ômer de cevada.” (Oséias 3:2)
  13. “Eis que o teu povo no meio de ti são como mulheres; as portas da tua terra estarão de todo abertas aos teus inimigos; o fogo consumirá os teus ferrolhos.” (Naum 3:13)
  14. “Segundo o que está escrito na lei do Senhor: Todo o macho primogênito será consagrado ao Senhor.” (Lucas 2:23)
  15. “Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo.” (1 Coríntios 11:3)
  16. “O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do varão.” (1 Coríntios 11:7)
  17. “Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão.” (1 Coríntios 11:8)
  18. “Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do varão.” (1 Coríntios 11:9)
  19. “As mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam sujeitas como ordena a lei.” (1 Coríntios 14:34)
  20. “E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é indecente que as mulheres falem na igreja.” (1 Coríntios 14:35)
  21. “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor.” (Efésios 5:22)
  22. “Vós, mulheres, sede sujeitas aos vossos próprios maridos.” (1 Pedro 3:1)
  23.  […] cansei, é sério! Parece que essas frases machistas não acabam nunca!

[ PARTE IV ]

Agora vamos conversar melhor [Chegou a vez da contextualização]

Somos seres sustentados pelo compartilhamento de saberes. Desde o surgimento de nossa espécie – Homo sapiens -, há mais de 200 mil anos, até os dias atuais, algumas características foram decisivas para o nosso “sucesso evolutivo”. O afeto, a criação e sustentação de narrativas imaginárias e o desenvolvimento de laços pessoais com o propósito de proteger o grupo estão entre as principais características humanas de existência e sobrevivência. Entretanto, há uma habilidade que merece ainda mais destaque, talvez por ser a grande responsável no processo de manutenção dessas características mencionadas: a capacidade de compartilhamento de informações e de conhecimento. Há pesquisadores que acreditam, inclusive, que essa é a principal diferença entre nós e qualquer outro animal, dizendo que é o compartilhamento de saberes que nos torna verdadeiramente humanos.

#VocêJáParouParaPensar que é justamente a partir do compartilhamento de saberes, o qual se estende por toda a História da humanidade, que nós temos algum conhecimento sobre praticamente todas as coisas que nos cercam? Isso não é excelente!? Porém, se usado de um modo incorreto, a propagação de determinadas formas existenciais pode ser destrutiva. É o que acontece, por exemplo, com a questão da misoginia, que, em curtas palavras, pode ser traduzida como ódio às mulheres.

Se você leu o meu texto sobre mecanismos de controle humano, viu que fiz algumas reflexões a respeito de como um sistema social humano utiliza de ferramentas para que a manipulação seja a mais eficiente possível. Entre essas ferramentas está a auto-culpa e o medo, amplamente utilizadas, por exemplo, quando o assunto é o machismo – um dos fortes ramos da misoginia. Por essa razão, é muito importante compreender ao menos quais foram as principais transformações socioculturais pelas quais a humanidade passou e que foram lenta e gradualmente alicerçando o comportamento machista tão presente e enraizado nas sociedades do século XXI.

Pergunte à História

Viajando um pouco na História, algumas coisas parecem fazer sentido. Por exemplo, bem nos primórdios da humanidade, quando se iniciava uma vida séssil, o ser humano percebeu-se protegendo espaços de terras cultiváveis ou qualquer propriedade primitiva. Foi então que ele notou que precisava legitimar de alguma maneira aquilo que possuía para que não o perdesse nas mãos de adversários. Além disso, para garantir o direito permanente à propriedade, seria necessário que houvessem sucessores de confiança, já que humanos são mortais e substituíveis. A saída mais segura, ou menos arriscada, seria possuir herdeiros, gerados a partir da união de gametas. E é aqui que a “viagem” se torna curiosa.

A necessidade de haver sucessores trouxe consigo outra “exigência”: existir alguém que cuidasse desses herdeiros; isso desencadeou uma rede de manutenção hierárquica do poder de um corpo sobre outro corpo, como parte de uma propriedade – dessa vez,  do tipo “biossocial“. Logo, numa sociedade formada por grupamentos humanos primitivos, vence aquele que mais fortemente defender suas propriedades e mantê-las vivas, além de ser capaz de deixar mais descendentes férteis que garantirão a proteção nas gerações seguintes; atualmente, esses descendentes são chamados de prole, progênie ou simplesmente de filhos.

Na ausência de uma legitimidade inata, seres dotados de ganância e carentes de empatia geralmente optam pela violência. Por razões diversas e constantemente debatidas entre antropólogos, historiadores e sociólogos, os humanos do sexo masculino foram a cada geração dedicando-se à caça de alimentos e à defesa do grupo; ao passo que os do sexo feminino ficavam cada vez mais nas propriedades, responsabilizados sobretudo pelo cuidado parental e pelos afazeres domésticos. Nesse momento, ainda incerto na História, porém não muito distante da grande revolução agrícola (cerca de 10.000 anos atrás), parecem ter surgido as bases primitivas do que seria a família. É justamente nesse contexto que foram instituídas práticas abusivas e altamente punitivas, com o objetivo de obrigar as mulheres a permanecerem em suas habitações, cuidando dos “herdeiros” e do lar. Isso certamente que só teria acontecido por questões de controle social, impostos violentamente – uma vez que não há outra razão biológica que impedisse Homo sapiens fêmeas de atuarem na caça e na proteção do grupo, tal como podiam fazer os indivíduos do sexo masculino.

Nesse contexto, não é difícil perceber que a verdadeira função da família não era como a “romantizada” no final do século XX e começo do XXI; antes, ela serviria mais como um mecanismo de defesa e de controle de bens que como um núcleo de amor e paz. Sobre esse assunto, o historiador francês, Philippe Àries, disse que

[…] essa família antiga tinha por missão – sentida por todos – a conservação dos bens, a prática comum de um ofício, a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem, e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver, e ainda nos casos de crise, a proteção da honra e das vidas. Ela não tinha função afetiva. […] o sentimento entre os cônjuges, entre os pais e filhos, não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família: se ele existisse, tanto melhor.

Há quem diga que essa configuração de poder familiar foi parte crucial de um processo evolutivo, e que a nossa espécie pôde se manter até os dias atuais exatamente por existir essa divisão de tarefas pautadas no gênero. Entretanto, evolutivamente falando, considero que essa justificativa não é honesta, tão pouco merece ser fortalecida. Se, por um lado, essas práticas de dominação do masculino sobre o feminino permitiram o “progresso” humano, a defesa da propriedade e a manutenção da prole (como alguns dizem), por outro, essa não era a única opção. Seria mais sincero, embora não justificável, supor que o domínio sobre a mulher garantia aos homens alguns privilégios, como uma imagem de poder, simbolizada pelos venerados e antigos mitos dos heróis, ou até mesmo uma questão de propriedade humana, bastante valorizada na época. Ao que tudo indica, dada a vantagem sociopolítica do período em questão, os homens preferiram não abrir mão dessa forma de existência. Pelo contrário, foram criados cada vez mais mecanismos de controle sobre aquilo que deveria pertencer ao homem e à mulher. Daí advém outro fato importante: se “apenas” homens poderiam defender um grupo contra animais selvagens e contra outros humanos invasores, seria imprescindível que nascessem outros homens, os quais assumiriam como sucessores o lugar de posse e de proteção – o que traz uma abertura no entendimento sobre a questão da valorização do filho sobre a filha, tão presente em narrativas épicas da humanidade e também em culturas do século XXI, como observado nos EUA, na África e em países do oriente médio. Tudo isso serviu e serve de base sólida para o enaltecimento das características masculinas e da consequente desvalorização (se não do desprezo pungente) das características femininas.

Muito provavelmente esse comportamento social – de dominação fálica – tem ligação direta com a ideia do patriarcado como a vemos hoje. De forma nítida, constata-se a supervalorização histórica e popular masculina em detrimento da feminina, observada claramente a partir de narrativas de forte impacto e penetração social, como no caso do pentateuco (presente nas três maiores religiões monoteístas do mundo), em que a mulher é sempre submissa ao homem e também nas quais os filhos homens são privilegiados em relação às filhas, como já mencionado. Mas não acredite em tudo que eu disse só porque eu disse. Incomode-se, questione-se. E, na dúvida, pergunte à História, não fique apenas no “Achismo” intelectual – tem muita gente achando e compartilhando seus achados, e poucas são as que pesquisam.

Circo na cidade. Não alimente os animais!

Feita essa brevíssima abordagem histórica, podemos comentar sobre o machismo como vemos na atualidade. Assim, quero começar dizendo algo de extrema importância: com a ascendência do movimento feminista, alguns homens acreditam que elas – as feministas – querem ocupar o lugar privilegiado do “Senhores Alfa”. É mentira! O legítimo e indispensável movimento feminista busca por igualdade de gênero, de direitos sociais, civis e econômicos. Então, entendamos logo de início que feminismo não é o contrário de machismo.

Por sorte ou por azar, temos o costume de criar pares conjugados para praticamente tudo. Raras são as coisas para as quais não exista um par em contrário. Bem-mal, certo-errado, vida-morte, Deus-Satanás, amor-ódio, etc. E, como se não bastasse, ainda querem conjugar como um par o feminismo-machismo. Vejamos, se há mesmo essa necessidade de criarmos pares conjugados para toda terminologia, creio que, como disse o filósofo brasileiro Mario Sergio Cortella, o contrário de machismo não é feminismo, é inteligência“. E isso faz muito sentido para mim. E para você?

Outra observação importante é que: não é porque algo é explicável que ele se torna automaticamente justificável. O machismo como vemos atualmente é sem dúvidas algo estrutural, ou seja, ele é parte integrante das bases formativas da nossa sociedade e está presente desde muito cedo na vida de um indivíduo – seja ele do sexo masculino ou feminino. As explicações para isso são inúmeras, desde uma falha que se perpetua na transmissão dos saberes sociais – transmitindo conceitos e comportamentos de difícil remoção – até a manutenção de privilégios praticada por uma parcela significativa da sociedade; que, por sua vez, utiliza daquela falha para sustentarem o status quo. E tudo pode começar com meras definições subentendidas e transmitidas de geração em geração, como discutido por Simone de Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, que disse: “Na sociedade machista o homem é definido como um ser humano, a mulher como fêmea“. Todavia, essas explicações não têm o objetivo de justificarem a existência e permanência do machismo na sociedade. Pelo contrário, tenta-se encontrar formas de pelo menos reduzi-lo; e, se possível for, deve-se lutar pela sua eliminação.

Nesse sentido, em se tratando de um componente estrutural na nossa sociedade, o machismo deve ser amplamente discutido. Comportamentos machistas acontecem o tempo todo, em todos os lugares, quer você os perceba ou não. Como profundas e robustas ramificações radiculares que nutrem a grande árvore da misoginia estão o machismo, o sexismo, o feminicídio, entre outras variáveis do terror. Além disso, instrumentos potencializadores dessas variáveis – como as piadas, a publicidade e a propaganda, a falta de autorreconhecimento social da igualdade entre homens e mulheres – atuam como projeções das grandes raízes (como a do machismo) que favorecem o sistema misógino, o qual vê vantagens em oprimir um grupo para enaltecer outro.

Em um mundo de preocupações superficiais e voláteis, esclarecimento de conceitos é poder. Cada ser humano precisa enxergar que o simples fato de diferenciar comportamentos que devem caber a homens e outros que devem caber a mulheres já é uma problemática em si. A existência de uma diferença salarial que privilegia os homens, a falácia da capacidade cognitiva atrelada à masculinidade, a suposição da força como atributo exclusivamente masculino e tomada de decisão racional vista como exclusividade do macho são conceitos aceitos e fortalecidos diariamente, de formas variadas e em meios sociais distintos. Mas – não se espante – isso ainda não é o machismo propriamente dito. O machismo existe quando qualquer característica que é socialmente atribuída a uma mulher torna-se banalizada e inferior àquelas atribuídas a um homem. Somos machistas quando achamos que, por ser mulher, uma pessoa não pode realizar tarefas socialmente atribuídas aos homens, pois lhe falta capacidade. Isso também significa dizer que um homem será “menos homem” se ele praticar alguma ação “destinada” às mulheres, pois ele estaria submetendo-se a uma posição social inferior. Isto é ser machista: supervalorizar características “social, histórica e culturalmente associadas ao sexo masculino” em detrimento daquelas associadas ao sexo feminino e agir violentamente para que as consideradas masculinas sejam impostas. Para apimentar mais, aqui vai outra coisa que não é novidade: ser machista não uma ação praticada apenas por homens, mas também por mulheres. Isso tende a dificultar ainda mais o processo de entendimento, caracterização e remoção desse entulho cultural da nossa sociedade.

Você leu atentamente as frases que iniciam essa publicação? Foram 73 amostras de pensamentos machistas externalizados em palavras; e suspeito que você tenha percebido que as separei em Parte I, Parte II Parte III. Pois bem, a Parte I refere-se às frases mais comumente utilizadas por homens machistas; enquanto a Parte II diz respeito às aquelas que constantemente são proferidas por homens e por mulheres. Quanto às frases da Parte III, como você deve ter notado, elas estão presentes na bíblia, que é o livro mais lido no mundo (não coletei todas as frases, seria algo demasiadamente extenso, mas trouxe apenas algumas amostras do quanto há de machismo dentro desse livro); e, acredite, muitas pessoas conseguem achar justificativas para cada um daqueles dizeres. A somatória dessas frases tem como principal objetivo aqui no texto fazer-te reconhecer as projeções mais machistas, além de te fazer pensar se você fala ou ouve esse tipo de coisa no seu dia a dia; não farei um comentário sobre cada uma, porque, você sabe, seria um outro texto (também gigante). No que diz respeito a recorrência dessas frases na nossa sociedade, particularmente, acho impossível que você nunca tenha se deparado com pelo uma delas ao longo da sua vida.

Infelizmente, e sem nenhum tipo de orgulho, digo que já falei muitas dessas frases em alguns momentos da minha existência (a constatação antecede a mudança, hoje me policio muito mais, não aceito a ideia do machismo na minha conduta humana), bem como cansei de ouvi-las de muitas outras pessoas; não sei dizer quantas foram as vezes que ouvi as frases da segunda parte ditas sobretudo por mulheres (seja pela minha mãe, amigas, irmãs, etc.). Tão prejudicial quanto isso, se não muito mais, é notar que grandes influenciadores estão palestrando para milhares de pessoas em uma sociedade já machista, mas que não fazem o menor esforço para combaterem esses comportamentos. Pelo contrário, enfatizam na forma de gracejos, piadas e, quando não, reforçam esse argumento preconceituoso baseando-se na “” – eles amam as frases da Parte III.

Em um momento histórico no qual homens e mulheres (embora em quantidade ainda tímida) utilizam de mídias sociais para alçarem suas vozes em protesto ao machismo, alguém que está frente ao povo e que utiliza dessas mesmas mídias não pode se considerar desavisado ou desavisada. Haja vista isso, insistir no machismo público parece-me mais um ato genuinamente hostil e intencionalmente danoso, ou, na melhor das hipóteses, é uma declaração de extrema ignorância da parte do falante.

Recentemente, tive o desprazer de assistir a um vídeo no qual o pastor Claudio Duarte (o qual sempre considerei um Homo sapiens muito machista, homofóbico e com conselhos totalmente desnecessários) falando sobre “ideologia de gênero“. Esse vídeo especificamente, embora não fale do machismo de forma explícita, mostra como esse tipo de pensamento é construído tendo por base a crença religiosa. Em outro vídeo, por exemplo, ele se mostra muito mais espontâneo, e diz coisas que infelizmente são recebidas com muito entusiasmo pelo público presente. Na tentativa de encorajar as mulheres ali acerca do casamento (segundo ele menciona, cerca de 2200 mulheres assistiam à palestra), ele diz que “a senhora tem a coisa que ele [o marido] mais quer nessa vida – nem o melhor amigo dele tem -, senão ele ficava com o amigo. Eu te pergunto: você sabe que “coisa” é essa que ele menciona na palestra? Pense! … Logo após falar essa asneira frase, ele tenta justificar dizendo que “essa coisa” é o joelho, “para dobrar e falar com Deus“. No entanto, pelo que me lembro muito bem das aulas de anatomia que tive na graduação, ambos os humanos do sexo masculino e feminino têm joelhos, e não recebem nomes diferenciados de acordo com o sexo – logo, o “amigo do marido” também o tem. Por isso, repito a pergunta: você sabe que “coisa” é essa que o pastor menciona no vídeo? Pense! Atenção: a fala entre o tempo 3:08 e 4:38 é uma demonstração gritante de machismo – e a reação da platéia apenas legitima esse discurso (que na verdade deveria ser repudiado).

Em outro momento de desprazer colossal, minha irmã, que sabe o quanto luto contra essas práticas machistas, inconformada com o que assistiu mostrou-me um vídeo de uma missionária, a Camila Barros. A Camila é mais um ser humano que (na minha opinião) prestou um verdadeiro desserviço sociocultural ao dizer que mulher “que não presta assistência, abre concorrência“. Não sei para você, leitor e leitora do Blog Devaneios Filosóficos, mas, para mim, a fala de uma mulher “ensinando” a igreja a ter uma vida melhor não deveria ser nem perto disso. Obviamente que tamanho absurdo não deveria ser dito por ninguém, nem do sexo masculino nem do feminino. Fico tremendamente chateado ao perceber que é possível ouvir a manifestação “positiva” dos presentes no culto, que evidentemente concordam com o que é dito. Não satisfeita, a missionária consegue ser ainda mais inusitada a partir daqui. Fica a pergunta: por que é tão complexo entender que mulheres não são de forma alguma assistentes dos homens? Isso é uma falácia muito grande, que parece custar a se desprender do imaginário coletivo.

Existem inúmeros exemplos de machismos bem explícitos, sem máscaras nem véu. Não é necessário citar todos, pois você conseguiria rastreá-los com muita facilidade em praticamente todos os lugares, desde uma rápida visita às redes sociais na internet até um almoço em família. Como destacado em um texto da Paula Bernadelli, há uma frase que ilustra muito bem o porquê do comportamento machista ser amplamente difundido e pouco rejeitado – e fica fácil perceber que isso acontece pelo fato de que as pessoas machistas geralmente não querem se enxergar como tais, preferem dizer

Eu não sou machista, abomino toda forma de violência contra mulher, tenho mulher, tenho filhas, tenho amigas, respeito todas, era só uma piada, foquem sua revolta contra os machistas de verdade, aqueles que batem em mulheres; não tirem minha piada de contexto para me tornar um monstro, eu estava brincando, era só uma piada”.

Perceber o machismo na sociedade é como perceber-se em um circo, no qual tudo é levado pelo lado da “brincadeira”, mas que na verdade é bem real e significativo. Em circos realizam-se diferentes tipos de atrações, seja com animais ou seja com objetos de alto risco. Entretanto, para além das apresentações, existem muitos rituais e treinamentos que exigem sacrifícios da parte dos animais humanos e não humanos envolvidos nos espetáculos. Apoiar esses tipos de circos é apoiar também toda a carga de sofrimento que os mantêm funcionando. Assim é o machismo. Se queremos que ele seja eliminado da nossa sociedade, devemos insistentemente rejeitar suas atrações e não patrocinarmos nenhuma de suas peças. Quando houver um “circo machista” na sua cidade [entenda-se “na sua cidade” como: no seu dia a dia, na mesa de conversas, no trabalho, na família, etc.], lembre-se: além de não comprar os ingressos, não alimente os animais!

O machismo faz mal para todas as pessoas

Alguém pode até acreditar que o machismo afeta somente as mulheres, e que os homens são sempre os privilegiados. Isso é um engano, saiba logo! O machismo afeta duramente tanto a existência da mulher na sociedade, quanto a do homem. A mulher é o ponto mais mirado, pois é ela que acaba sendo o lado que mais sofre com os comentários e, sobretudo, com o verdadeiro descaso resultante dessa prática. Mesmo assim, não podemos desconsiderar a questão do homem nesse tema.

Homens são criados para serem os seres de total virilidade, com uma brutalidade comportamental que deve ser sempre a sua marca registrada. Homens são reprimidos caso demonstrem qualquer tipo de delicadeza ou um ar de sentimentalismo. Escolher atividades que culturalmente são atribuídas às mulheres é motivo para piada, chacota e, quando não, violência física. Nesse vai e vem de repressões, muitos acabam se rendendo ao padrão pré-estabelecido pela sociedade, em que homem não chora, não lava a louça, não usa cor de rosa, não apoia o feminismo e não conversa em rodas de mulheres. Tudo isso a um custo muito alto, com desbalanços psicológicos que podem resultar inclusive em frustrações e desencantos de si mesmo, já que vive modelando-se segundo um ideal que lhe foi duramente imposto, mas que não é seu. Quando o assunto é a própria sexualidade, a questão assume um caráter delicado e muito mais profundo. No entanto, falar disso aqui estenderia demais o texto, mas não há razões para ficar triste, eu tenho uma publicação pronta, que fala em detalhes desse assunto tão banalizado e mal compreendido, que é a sexualidade, não deixe de conferir.

Alguns machos são escondidos. Por trás de um grande muro nem sempre há um castelo, pode haver somente medo e covardia. Alguns homens de verdadeira má índole veem nessas características machistas uma oportunidade de exercerem poder sobre outra pessoa – como ocorre em grupos de “machinhos inseguros” que precisam reafirmar a sua masculinidade acima de tudo, e que vence aquele que for mais próximo em personalidade e musculosidade do Hulk transformado. Como acontece de alguns gostarem desse estúpido jogo de poder artificial, estes fazem questão de manter a diferença gritante entre “coisas de mulher” e “coisas de homem”, reforçando padrões masculinos que não dizem nada sobre ser ou não homem. No que diz respeito ao trato para com as mulheres, na melhor das hipóteses, eles as enxergam como suas “assistentes”, jamais como uma pessoa de iguais direitos sociais. Mas, sendo bem realista, eu acredito que esse tipo de macho-oportunista utiliza-se de um jogo sujo para derrubar a imagem que a mulher tem de si mesma e inicia um processo de construção de uma dependência afetiva. Tudo se dá como na construção de muros que servem para esconder o que realmente habita em um homem como esse: a maledicência, o medo de perder seu posto (por isso se esforçam tanto em criar artefatos hipnóticos) e uma profunda covardia.

Conforme nos aprofundamos no assunto, começamos a depreender que machismo não seria tão bem sucedido se ele não tivesse cumprido eficientemente o seu papel ao longo do tempo – e nesse caso, eficiência é sinônimo de impregnação sociocultural. Um mecanismo de controle e dominação, quando bem eficiente, precisa convencer os seus controlados de que eles merecem o controle. Em outras palavras, para que o machismo fosse bem enraizado seria necessário que tanto homens quanto mulheres se enxergassem como merecedores do machismo, ou, que o enxergasse como algo no mínimo normal, que faz parte do curso natural da vida. Infelizmente isso aconteceu. Mulheres e homens agem diariamente como se o machismo fosse mais um termo criado pela oposição para difamar atitudes praticadas a tanto tempo na sociedade, mas que agora está “sendo perseguida por pessoas revoltadas”.

Lembremo-nos de que a ideia de família não é recente; ainda mais importante é percebermos que com o passar do tempo as características femininas associadas ao núcleo familiar e ao cuidado do lar e da prole foram lentamente se petrificando dentro de alguns estereótipos, chegando ao ponto em que pertencer a esses estereótipos era sinônimo de estar na normalidade – logo era bem visto e louvável. Disso podemos inferir que deixar de ser uma mulher que incorpora discursos machistas também é algo recebido com muita resistência – afinal, tudo a que nós alimentamos e que nos acompanha por gerações – conscientemente ou não – tende a nos causar desconfortos quando nos é tirado, seja por quem ou qual for o motivo.

É devido ao grande espalhamento e à assertiva incorporação do machismo na humanidade que muitas pessoas são vítimas desse mal. Ele atinge todos e todas, de uma forma mais branda em alguns casos, mas de formas bastantes violentas em outros. Recentemente, dois parentes meus estavam em casa (um homem e uma mulher), quando ouviram gritos na rua. Ao olharem pela janela viram que havia um indivíduo agredindo fisicamente uma mulher (da qual dizia ser o marido). Na tentativa de ajudá-la, os meus parentes telefonaram para polícia, que demorou demais a chegar. Eles, então, decidiram descer para ao menos fazerem com que o agressor se afastasse da mulher. Resultado: o agressor de fato se afastou da mulher, a qual acabou fugindo. Em contrapartida, esse homem violento ameaçou os meus parentes dizendo que “em briga de marido e mulher não se mete a colher“, e que ele era bandido e que então sabia onde eles [meus parentes] moravam. Virando-se para a minha parente ele disse em tom de forte ameaça “então é aí que você mora?“. Tempos depois veio o atendimento policial, que perguntou ao meu parente o porquê dele ter descido para se “meter” no caso; quando foi dito que a razão era evitar que algo pior acontecesse à mulher que estava sendo agredida, o policial (homem) disse-lhe que “não deveria ter se intrometido“, pois “se a mulher está com um cara assim é porque ela sabe quem ele é“. Só faltou dizer que ela estava com um homem daquele tipo “porque gosta de apanhar“, como já ouvi muitas outras pessoas dizerem sobre casos bem parecidos. Infelizmente haviam outras pessoas na rua que, por motivos que prefiro não julgar, nada fizeram. Pouco tempo depois da polícia se retirar do local, esse mesmo homem violento retornou à residência dos meus parentes buzinando, batendo no portão e ameaçando-os ainda mais. Eles precisaram dormir em outro lugar, temendo que houvesse uma invasão surpresa. O que a polícia fez? Além de ser machista, não resolveu nada. Será que é normal um homem agredir uma mulher? Será que homens, por serem homens, têm esse direito? E será que mulheres que apanham do marido e mesmo assim continuam com ele o fazem porque gostam? É obvio que a resposta para cada uma dessas pergunta é “Não!“. Então, por que quase ninguém se manifesta para ajudar? É o medo, uma parte do processo.

Repito, todos sofremos com esse mal. Não podemos continuar sendo coniventes com a propagação desses ideias. Infelizmente, como vimos, quando tentamos evitar eventos trágicos – que excedem o machismo – podemos inclusive sofrer ameaças (quando ficam apenas nisso). Logo, combater as raízes dessa grande árvore pode ser um passo importante, mas que tem suas consequências – mesmo assim, não podemos ficar parados. Antes, porém, precisamos nos reconhecer como pessoas passivas de sermos machistas para, então, iniciarmos a constatação e depois o combate.

Você é machista?

Em menor ou em maior grau, todos somos machistas. Há quem se enxergue como tal e que busque desprender-se disso; há quem desconhece totalmente essa característica e sente-se como um ser humano puro (que ilusão!) e há pessoas que, mesmo sabendo que são machistas não pretendem mudar, pois apesar de tudo, acham que isso não é errado. Reconhecer-se machista nem é a parte mais complicada da história, o mais difícil é saber o que é e como o machismo se apresenta. Uns testes práticos: se ao ler alguma das 73 frases iniciais você se identifica por dizer alguma delas, então, você é machista; se ao assistir aos vídeos que linquei no texto você não sentiu nenhum tipo de desconforto, você é machista; se para você esse texto só fala bobagens e está repleto de vitimismo, então, você é machista! Se tudo bem para você caso a “decisão final deva ser do marido, já que é ele quem deve sustentar a casa“, então, você é machista; Se você diz ou concorda que digam que “mulher que não presta assistência, abre concorrência“, então, além de um ser humano parvo, você é machista; se, na sua opinião, “uma mulher que sai à noite com roupas muito agarradas ao corpo está pedindo para ser estuprada“, então, além de uma pessoa potencialmente criminosa, você é machista! Cuide-se depressa.

Evidentemente que reconhecer-se como machista não mudará o cenário nem pessoal, nem social de modo imediato. Mas pode servir como um primeiro passo, que deve ser percorrido em direção ao abandono desse comportamento. E, como dizem por aí, educação começa em casa. Se isso for verdade, algumas coisas precisam mudar urgentemente.

No atual cenário da sociedade, acredita-se que a criação dos filhos deva ser feita pelas mães, pois “elas têm mais jeito com crianças[eis um sinal de machismo]. Infelizmente ainda há muitas pessoas que acreditam no evento da maternidade como a verdadeira transformação da mulher em Mulher, afirmando categoricamente que “uma mulher só se realiza quando tem filhos“. No último casamento que fui convidado para ser padrinho, não consegui disfarçar minha expressão facial ao ouvir a cerimonialista dizer que “uma mulher somente se completa ao lado de um homem“, e que o casamento é o que sela esse compromisso, seguindo com a bênção dos filhos na casa. Esse pensamento, que amarra a ideia do feminino ao lar e aos filhos, não é recente, vimos isso lá atrás no texto. Contudo, mantém-se muito forte e acaba por perpetuar o machismo cultural.

Quando uma mulher que aceita os costumes machistas se submete a eles sem ao menos perceber-se controlada, ela também aceita que nasceu para ter filhos, e os tem. Qual é a probabilidade de uma mãe que alimenta comportamentos machistas (consciente ou inconscientemente) deixar de passá-los aos seus filhos? Um pai machista, que sustenta diariamente o seu discurso de “homem da casa“, e diz que “a mulher deve-lhe favores por ele amá-la e sustentá-la“, dificilmente será o primeiro a querer extirpar o machismo do lar. Pelo contrário, ao perceber que seu discurso de superioridade varonil lhe garante “regalias” como roupa lavada, comida sempre feita, casa arrumada e um tom de voz sempre baixo e polido, ele evitará o máximo que seu machismo deixe de existir. Sem dizer que ele não perderá a oportunidade de reforçar a sua masculinidade perante os amigos dizendo que é um cavaleiro muito gentil, pois “até ajudou a limpar a casa no final de semana, pois a mulher estava doente“, ou que “precisou ficar de babá, porque a mulher foi ao velório do avô“.

Nesse mesmo contexto, eu já ouvi uma mulher me dizer que o marido dela “faz até mais do que deveria em casa“, e que ela não tem do que reclamar – nesse caso, eu conheço o marido em questão, e ele não move uma cadeira da casa por livre e espontânea vontade; com muitíssima insistência ele lava a louça, mas só com muita insistência (vale dizer que ambos trabalham fora de casa, e que saem e chegam juntos do trabalho, exatamente na mesma hora e no mesmo carro). Ou seja, essa mulher, assim como muitas outras, comprou a ideia de que os deveres domésticos são de responsabilidade feminina, mesmo que ela trabalhe no mesmo período que o marido. Além de comprar a ideia, ela se sente agraciada pelo excesso de “ajudas” do cônjuge – isso em menos de cinco anos de casamento.  Você percebe que ambos, nesse casamento, são machistas? Será que eles ao menos desconfiam disso?

Ser machista também é ser agressivo em menor ou em maior grau. Quando somos machistas nos sentimos ameaçados com qualquer ascenção feminina – ainda que não deva ser considerada como uma ascensão, mas sim como um usufruto do direito dela ser mulher e de ser livre. Rejeitar todo e qualquer comportamento associado ao feminino traz consequências gravíssimas. Talvez seja por rejeitar o feminino que um homem desprovido de inteligência não suporta que qualquer característica dita feminina esteja presente em um corpo do sexo masculino. Dessa constatação surgem reflexões importantes. Parece fortemente que um homem que ofende o outro por este estar usando cor de rosa, ou falando de forma “afeminada” não o faz pela causa em si, mas por considerar que um homem não deve se “rebaixar ao nível feminino” ao ponto de praticar as mesmas ações ditas “típicas de mulher”. O contrário também é verdadeiro. Quando uma mulher é repreendida por “falar, andar ou sentar como homem“, ou quando uma mulher é humilhada porque, assim como fazem os homens, “ficou com várias pessoas na festa“, talvez o real desconforto machista também não sejam as causas em si, mas o simples fato de que uma mulher jamais seria merecedora de praticar coisas que estão “reservadas” para os homens, e por isso “está querendo ocupar um espaço que não lhe pertence, tampouco é merecido“. Reações assim – violentas e medíocres – falam mais da pessoa machista que da pessoa alvo do ataque.

Um bom observador nota logo que uma pessoa machista é absurdamente insegura de si e constantemente utiliza de mecanismos de controle para se reafirmar perante o conjunto social. Ao contrário do que insistem em dizer, ser masculino [nos moldes tradicionais] é algo que nunca foi forte o bastante para existir por conta própria. Precisou-se contratar o machismo para prestar segurança diária e inseparável, do contrário, o masculino como nos é apresentado desmoronaria na sociedade. Acreditar que um indivíduo do sexo masculino deixaria de sê-lo caso decidisse dançar balé, ou caso resolvesse usar uma saia, ou que perderia sua virilidade se passasse a cuidar da casa e a dar banho e a trocar as fraldas dos filhos só demonstra o quão frágil é a masculinidade humana tal como a vemos.

Se uma série de atividades no mundo físico são capazes de transformar as atividades no mundo subjetivo é porque essa subjetividade corre sérios riscos de desabar. No máximo, quando praticamos exagerados rituais que têm por objetivo a insistente afirmação da nossa subjetividade, este pode ser um sinal de que algo está acontecendo de forma bastante forçada, e que depende da exposição externalizada para ser mantido vivo, já que o componente interior e pessoal ruiu faz tempo (caso já tenha existido em algum momento). Ser machista é ser uma pessoa sabotada – e isso vale para homens e para mulheres. Um ser machista é sempre uma criação imaginada, que busca reafirmar-se em atitudes no mundo físico, mas que jamais aceita a realidade.

Como não ser machista?

Sendo um pouco mais chato que de costume, eu diria que ser machista não é uma escolha do indivíduo, e que há chances absurdamente grandes dele o ser. Antes mesmo do nosso nascimento já temos pré-determinadas as coisas que faremos, a cor da roupa que usaremos e um nome que seja “para homem” ou “para mulher”. Se você é uma mulher, saiba que antes do seu nascimento as suas roupinhas eram cheias de detalhes, flores, moranguinhos e que tinham uma dose extra de cor de rosa. No caso de famílias privilegiadas, que podem oferecer um dormitório para seus recém nascidos, o quarto do menino é repleto de azul, com bonequinhos de dinossauros, naves espaciais e desenhos de planetas no teto, com carrinhos na estante e com qualquer outra menção ao desbravamento e à criatividade. Para as meninas, bastam desenhos de flores e algumas princesas da Disney – e mais detalhes cor de rosa.

Esse sexismo exagerado já desenha o caminho do que será feito da criança ao longo de seu desenvolvimento até se tornar adulta. Enquanto o menino pode ser mal educado, brincar na rua e se sujar, a menina deve estar sempre em casa, aprendendo os serviços domésticos e as boas maneiras de etiqueta. O menino torna-se o orgulho do pai quando diz que “pegou uma menina na escola e que foi para a cama com ela“; se o mesmo acontece com a menina (essa que dormiu com esse garoto), logo ouvirá algo como “Que vulgar que você é – isso é coisa de puta! Desse jeito, nunca conseguirá um homem sério para se casar“. Um rapaz que é aprovado em engenharia civil é visto como um nerd que está aproveitando a sabedoria que tem; enquanto a menina que decide fazer física quântica “só pode estar querendo se revoltar” – dizem; quando não, dizem que “ela está fazendo isso somente para ‘pegar’ homens na faculdade“.

Antes que você desista da vida, vale dizer que, mesmo com toda essa carga cultural pesada sobre questões do gênero, o machismo pode ser combatido a partir de atitudes mais incisivas. Quem sabe, dessa forma podemos deixar de ser machistas e ensinar as novas gerações a não o serem. Uma maneira interessante é começarmos a falar mais desse tema, por mais desconforto que isso possa causar em quem vive “machisticamente“.

Antes de escrever esse texto eu decidi publicar uma foto no meu status de WhatsApp, obtida no Blog Superelas, e que dizia qual foi a coisa mais machista que lhe disseram?“,  – recomendo que você visite o link e veja as frases relatadas pelas leitoras. No caso do meu status de WhatsApp as respostas não foram tão numerosas quanto sei que poderiam ter sido, mas, por saber que muitas pessoas sentem-se inseguras para falar sobre isso (ainda mais com um homem), eu me contento em ao menos ter recebido algumas respostas de pessoas incomodadas com a situação. Algumas respostas foram ditas de uma mulher para outra, outras por um homem, isso segundo o que as pessoas me relataram; mas há aquelas frases que não sei quem foi a fonte emissora, mesmo assim dá para deduzir que poderia ser dita por qualquer pessoa bastante machista. Confira:

“Homem não lava a louça”;

“Ir à feira? Nem pensar” (dito por um homem);

“Cozinhar e lavar banheiro é coisa de mulher”;

“Minha esposa que coloca comida no meu prato” (dito por um homem);

“Eu sou o primeiro a se servir nas refeições, se não, não como” (dito por um homem);

“Achei que o seu sobrenome fosse do seu marido, é forte” (dito de uma mulher para outra mulher);

“Mulher precisa ser mais delicada, essas mulheres que gesticulam demais falam igual homens” (dito de uma mulher para outra mulher);

“Nossa! Você dirige!? Meu marido que me leva aos lugares” (dito de uma mulher para outra mulher);

“Nossa! o seu marido passa roupas? Eu não deixo” (dito de uma mulher para outra mulher).

“Não entendi! Você pode me explicar?”

Outra sugestão bastante valiosa nesse mundo complicado e que serve quase sempre para trazer à tona uma ideia machista e propôr uma reflexão é usar da ferramenta Não entendi!“. Funciona da seguinte maneira. Supondo que você começou a observar, a estudar e a se podar em relação a esse tipo de comportamento nada agradável que é o machismo, você também estará hábil para identificar seus sinais nos outros humanos. Então, sempre que alguém te fizer um comentário machista, ao invés de partir para o ataque com definições e embasamento histórico, faça uma cara séria – porém natural – e diga com bastante clareza e serenidade: “Não entendi!“. Caso a pessoa seja insistente e siga no machismo, acrescente outra ferramenta e diga: “Não entendi! Você pode me explicar?”. São ferramentas valiosíssimas, que servem para qualquer tipo de comentário inadequado, seja de qual for o assunto. No caso do machismo, por exemplo, você perceberá se a pessoa tinha noção de que estava falando algo inconveniente ou se ela apenas repetia frases indesejadas. Essa pode ser uma excelente oportunidade de você mostrar que é possível viver sem ser machista. Em seguida, sinta a conversa e veja se cabem explicações mais elaboradas.

Dia após dia, geração após geração, poderemos reduzir essa prática tão danosa na nossa sociedade, mas que é mantida como se fosse parte da vida. E sabemos que não o é. Machismo não é bom, não ajuda e não conserta nada. Se ele garante algum privilégio a um grupo, esse privilégio é obtido às custas de muito sofrimento e desconforto – e que subjuga um sem-número de pessoas. Não sejamos complacentes com isso. O machismo é como um monstrinho que colocam do dentro de nós logo que nascemos, mas que cresce tanto quanto mais o alimentamos. Então, tente acabar com o machismo dentro de você, não alimente o monstrinho.

Por fim,

Finalizando o texto – e que texto grande, não é mesmo? -, quero agradecer-te por ler até aqui. Tentei explicar alguns fatores que permitiram a construção, a propagação e a manutenção do machismo na nossa sociedade global, e utilizei de um enorme conjunto de frases-exemplo para isso, foram mais de 100 dizeres machistas ao longo do texto. Infelizmente não pude dizer tudo, até porque não tenho toda essa bagagem intelectual, mas me esforcei para trazer questionamentos que considero importantes.

Por fim, gostaria de te pedir que comentasse ao final do texto o que você pensa sobre essa temática. Você já foi machista, ou sofreu algum desconforto vindo de alguém machista? Deixe suas versões e percepções nos comentários. Achou algo incoerente no texto? Por favor, diga-me, serei pronto em avaliar com você o seu ponto de vista e em corrigir o meu se for preciso. Estamos aqui para levantar questionamentos sobre diversos temas da nossa existência e buscar por respostas. E juntos seremos mais fortes.

vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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[ REFERÊNCIAS ]

Links sobre frases machistas

Os links abaixo, juntos, apresentam pelo menos 91 frases machistas que podem te indicar falas perigosas e tendenciosas no dia a dia, seja no âmbito religioso ou não. Parte delas eu utilizei para ilustrar o meu texto, e estão logo no início dessa publicação. Algumas foram adaptadas, com algumas correções ortográficas. Quanto às frases bíblicas, elas foram coletadas no segundo link listado abaixo, e ainda acrescentei outras tantas quanto me lembrei na hora. Portanto, acesse os links e leias as frases originais, bem como seus  respectivos comentários em cada página:

11 frases machistas (e rotineiras) para homens e mulheres pararem de falar
https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/03/14/12-comentarios-rotineiros-que-reforcam-o-machismo-no-dia-a-dia.htm

17 versículos bíblicos bizarros sobre as mulheres
http://jesusbebado.com.br/mulheres-na-biblia/

30 frases machistas que tentam te controlar e você não percebe
https://www.huffpostbrasil.com/dany-santos/30-frases-machistas-que-tentam-te-controlar-e-voce-nao-percebe_a_21697494/

As 33 frases mais machistas que as mulheres já ouviram
https://superela.com/frases-mais-machistas-que-mulheres-ja-ouviram/

Referências Bibliográficas não lincadas no texto

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Editora LTC. 2ª edição, Rio de Janeiro. 1981.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Editora Nova Fronteira – 1ª edição. 2016.

DILL, Michele Amaral, CALDERAN, Thanabi Bellenzier. Evolução histórica e legislativa da família e da filiação. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br, acessado em 23/01/2019.

“TEXTO ABERTO – sugestão de leitura”. A origem da família e sua evolução histórica e social.  Disponível em http://www.academia.edu – acessado em 23/01/2019.


NOTA: a imagem utilizada para compor a capa desse publicação foi obtida aqui.