Escrever é um processo encantador. Ao menos para mim é na escrita onde as coisas acontecem numa expressividade nua, intensa e voraz. Mas é preciso saber como, com quem e para quê fazemos isso. Algumas [muitas] pessoas querem que sua escrita assuma um formato específico, e nessa hora a culpa (ou até mesmo a exigência) será sempre em nome da “norma ABCDE“, jamais em nome de quem te solicita e te exige um enquadre. No fim, se você quer escrever em conjunto, saiba: precisará se apagar em alguma instância. A ideia de uma escrita “livre”, expressiva e autêntica pode até existir, mas ou ela circula entre seres ditos “não notáveis”, ou ela será como aqueles livros que são descobertos depois de muitos anos da morte da pessoa, onde já não podem contestar e não estarão disponíveis para serem sadicamente desapropriadas de sua criatividade. Esse sonho de produzir coisas milimetricamente ajustadas, lapidadas e sempre dentro do que disseram ser o modelo ideal é o jeito mais dessaborizado de expressar ideias, mas que o modo ocidentalizado de construir conhecimento acredita ser o único e mais viável. Chega a ser patético. Falta uma dose diária de poesia para essas pessoas dopadas pelo ópio acadêmico. Porém, e desconfio fortemente que, ao fazer isso, trairão a classe de quem [acha que] “sabe escrever de verdade”. Em vez de escrever, o que fazem é assinar o pacto e atualizar o contrato da mediocridade.

Apesar de constantemente engessada e encaixotada nas normas de pessoas frias, inseguras, supremacistas, narcisistas e frustradas, a escrita é uma arte. E, como praticamente toda arte, ela também empresta ao humano as asas que sua imaginação necessita para atingir voos tais que lhe permita enxergar o espaço com distanciamento. Mas é também ela que oferece uma visão de lupa para olhar aquilo que está para além do perceptível comum. Como a arte, ela se transforma em ser, ao passo que o ser é também artístico. O conhecimento separatista, com a razão de um lado e a emoção do outro, conhecimento esse que o Ocidente forjou em suas siderúrgicas do fazer-saber, aquele supostamente grego, europeu, cartesiano, kantianizado e hegueirizante, estadunidense, em suma, pertencente a pontos específicos de um norte global, não são em si desprezíveis, exceto quando se pretendem universais; como em geral se posicionam. Aparte mais trágica é o quanto esse estilo de fazer-saber se enraíza e penetra os solos colonizados – fazendo brotar suas árvores de folhas ver[da]des e frutos sucu.lentos; folhas que alimentam um imaginário coletivo inteiro, e que por sua toxicidade envenena lenta.mente o desejo pela vida. Produz-se criaturas adoecidas. Uma monocultura inteira pulverizada diariamente por veneno que objetivam eliminar tudo que as possa destruir. As monoculturas do saber querem todas escritas iguais e inteiras.

Esse adoecimento psicológico – mas que nitidamente atravessa cada pedaço do corpo – vem da universalização colonizadora. Universalizar uma expressividade, como a arte, como a escrita, é universalizar um saber; é assassinar outros modos pulsantes de expressão do ser. Esse epistemicídio elenca como místico tudo que não reluz a brancura; como mítico tudo que não conta a história alva; como espiritualmente carente e racionalmente faltante tudo que não se curva diante de um Jesus embranquecido e dos textos da [Branc]ademias; assim, seu exército de membros bastante militarizados (de todas as cores e gêneros) consideram alucinada toda representação [est]ética que não projeta na parede da branquitude a imagem canônica de fatos e dos fetiches instituídos por seres coloniais e, por que não?, assimilados pelos seres colonizados.

“Tudo que quando era preto, era do demônio, e depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de Blues”, disse Baco Exu do Blues, em sua música “Bluesman”. Apois! Tudo que quando era colorido, vivo em sua pluralidade, vertente em sua expressão, era chamado de exótico e animalizado, e depois virou branco e foi aceito nos livros, nas suas galerias e nas universidades, eu vou chamar de sequestrado! E queremos de volta!

Esperam que nossa maneira de expressão seja regulada. Tudo que puder ser medido, compassado, ajustado e sistematizado dentro de um regime de controle querem fazer com as expresões que variam para além do permitido nas jaulas da miséria produtiva. Tenho dito e repito: o que controla a sexualidade de um povo certamente controlará um povo. Escreve é uma expressão da sexualidade, a arte é uma expressão da sexualdiade, pois ali é um corpo que se manifesta; é um corpo que atesta suas vontades, é também o lugar de seus orgasmos, de seus desejos, mas também de seus traumas, medos , receios e gatilhos. O corpo é sexual, e a mente que nele habita também. Mas querem dizer que seu limite é o limte da colonização.

E se vale um desabafo mais que óbvio e em si evidente nas linhas e entrelinhas do que você leu até aqui, digo com bastante calma que a cada dia que passa eu me desgosto de “ter de escrever”; quero apenas poder escrever por querer. Sempre dizem que é preciso um ponto a mais, exigem a inserção de uma vírgula indesejada ou a remoção de muitas que me são indispensáveis; negam um pronome que foge da norma; rejeitam um termo pois ele é dito colonial. Não se deve usar “tu” ou “vós”, pois na língua portuguesa brasileira já está basicamente eliminado o seu uso – dizem as mesmas pessoas que, de dia e de noite, rendem-se às normas para serem que são. Que língua portuguesa brasileira é essa que conclamam tanto? Que “descolonização” é essa de que tanto falam? Que fantasia é essa que alimentam na esperança de que podem salvar outras pessoas arrastando-as para seus castelos de perfeição arenosa? Tu achas que a vida é esse conto que ouvistes? Vós pensais que sois o que, heim? Quiçá sejam pessoas que, assim como eu e como você, em alguma medida bebem do veneno da língua perfeita todos os dias, mas que só o nota no copo do outro, pois se acostumou com o gosto do próprio cale-se. Hipócritas sois vós! Hipócritas somos nós! A diferença talvez resida no quanto assumimos o que somos e em como repensamos essas colonizações. Mas tenho minhas dúvdas se pessoas perfeitas pensam, pois no mínimo supõem serem elas próprias a expressão do pensamento original e adequado.

A escrita que simplesmente vem e transborda carrega as próprias palavras das nossas emoções, sejam elas consideradas certas ou erradas por quem as lê, isso realmente pouco importa. Se e quando as palavras saíram é porque estavam lá, daquele jeito. Ou, dizendo de outro modo, se saíram é porque foi o modo mais possível de existirem para fora. Em qualquer que seja o caso, é o que tinha a ser dito. Mas a norma não quer isso de jeito nenhum. Talvez porque doa nela [a norma] ao porto de não querer admitir a semelhança? Sei lá, talvez seja só um jeito outro de colonização do dizer.

Penso que a norma é tão insistente porque se fosse permitido escrever sem os pontos e vírgulas ditos ideais, contempomporâneos e aceitáveis as pessoas se expressariam mais perto de como desejam, e o conjunto normativo se sentiria tão incompetente na sua compreensão do mundo que se angustiaria a cada termo contemplado. Olhar para o espelho e não ver sua imagem ali espelhada gera a invisibilidade de si mesme, gera um não-existir, um não-pertencer. Ousar criar a escrita é ousar contra a norma, a não ser que você seja uma pessoa branca e eleita por seu brilhantismo seletivo. Nesse caso, se você pertence à hegemonia, sim, sua legítima capacidade de criação será enaltecida, seus neologismos serão idolatrados, sua existência será celebrada. Não que esses sujeitos sejam [des]qualificados em suas produções. Muito pelo contrário, a genialidade é notória; assim como é notória a seletividade com que elegem quem pode e quem não pode ser genial. E é aqui que vive o meu ódio. A linguagem pode ser fluida, desde que corram nos rios do castelo imperial. E haja corpos súditos para manter isso funcionando!

Toda história é contada dentro de relações de poder, então o conteúdo de uma história está, sem exceção, sob disputa. Quem tem mais alcance para disseminá-la tende a produzi-la de modo mais crível ou, no mínimo, mais aderente. Nesse sentido é importante pensarmos em como certas narrativas são mais sensibilizadas que outras, como recebem mais destaque, enquanto outras, de tão normalizadas são quase que postas como parte não presente na história que não precisamos falar dela nem nos preocupar com suas consequências.

O grande pesadelo disso tudo é que sabemos que existem espaços e espaços para falarmos o que e como sentimos. No entanto, os espaços se desenham para produzir saberes que se espalharão conforme mais pessoas topem carregar suas sementes e plantá-las em outras terras. Muitas vezes fazem isso sem nem perguntar a quem vive nessas terras se há um interesse em fazer isso. Apenas fazem. E depois dizem “eu só queria te ajudar!”.

O grande desatino não é sobre haver espaços que exigem determinados regimentos para que funcione uma regulação da expressão. O problema, ao meu ignorante ver, é que essas dinâmicas são tomadas por verdadeiras em lugares onde sequer as cabem e onde jamais foram solicitadas nem necessárias. A violência que existe em dizer que uma determinada poesia poderia e deveria ser escrita com outros sinais e pontos é da ordem do colonial que critica a colonização. É como dizer “você pode se expressar como quiser, mas se fizer do jeito que estou falando será aceito, do contrário, não queremos!”. É contraditório em sua matriz.

Viver é algo que me cansa diariamente, a cada dia maishoje mais do que ontem, e para sempre mais do que nunca. Existem outras formas de morrer, e escrever não é a que eu elejo para mim hoje. Pelo contrário, se estou em vida em pleno 2023 é somente porque sempre escrevi o que senti; é como eu conseguia escrever; fazer isso por um dever é quase que um envenenamento diário; principalmente quando as partes envolvidas só acham adequado aquilo que elas – e somente elas – pensam com seus pares da indústria farmacolexical, uma produção medicamentosa da normas de ser e de falar.

Precisamos nos provar tanto, o tempo todo, ao mundo inteiro, que com o tempo corremos o alto risco de, por tanto ter de provar nossa dignidade, não acreditarmos mais que somos dignas de coisa alguma. O racismo nos retira o direito e o prazer de apenas ser gente, pois na maior parte do tempo estamos tentando provar que não somos monstros. Para além do peso da raça, temos ainda as facadas que recebemos.

O perfeccionismo linguístico, e com ele todos os preconceitos possíveis, nos posicionam num lugar de ilegitimidade tal que enfraquece qualquer vontade de dizer o não-dito. Seus itálicos são demaisados, seus “[]” são desnecessários; seus “;” funcionam um emperramento para quem lê; suas vírgulas são pouco estéticas; suas palavras são um resgate ao modo colonial de falar; seus termos deveriam ser substituídos, pois estão em desuso. O que tudo isso me mostra é que tais criaturas aprendem com primor o que lhes foi ensinado: sabem escrutinar cada canto da palavra e do texto; percebem a menor das incoerências linguísticas e gramaticais criadas pela norma; notam de longe quando uma conjugação não faz sentido; aplicam com maestria seus chicotes sobre quem não pisou no ponto certo; transformam num modelo de alvenaria, ou em óleo sobre tela, toda uma realidade que pulsa na materialidade da vida. Passaram a crer que representar a vida em modelos estabelecidos é tudo que se pode fazer, e quiçá é mais importante fazer isso do que viver o que pode ser vivido e expressar o que pode ser expressado. Mas não conseguem mais; são verdadeiros objetos adestrados. Por não saberem [ou pela indisposição de] mastigar aquilo que não conhecem acabam se engasgando com a diferença. Mas as co.laborações normativas prestam o resgate, e depois de sair do enguasgue começam a vomitar tudo que comeram no restaurante uni.versitário. E nós ainda temos que limpar essa sujeira com nossos panos? Não! O que produz essa indigestão é o veneno que tomam em seus drinks.

Por outro lado, e até justamente por isso, de tanto beberem do veneno, perderam o sentimento de existir para além da gaiola labirintina na qual entraram e esqueceram de onde era a saída. Perderam o senso de poder escapar, desviar, romper, trair. São pessoas que esqueceram ou que não tiveram tempo de aprender a transgredir. Emoções e subjetividades enjauladas no molde da perfeição, moldadas pela ideia de liberdade; aves que pulam de poleiro em poleiro, em suas gaiolas de vidro.

De tanto “aprenderem” um modo específico de ler e escrever, perderam a sensibilidade de entender o que as pessoas dizem. Assim como ouvir não é o mesmo que escutar, saber ler e escrever está longe de ser o mesmo que entender o que está escrito e muito menos de entender o que quiseram dizer. Perguntar “o que voce quis dizer aqui” é quase uma ofensa para quem quer corrigir o mundo pelas lentes ortodóxas; ao fazer isso poscionam-se num lugar de quem não sabe algo, e isso é trágico para quem aprendeu que nunca deveria estar no mesmo plano de outros saberes, mas sempre acima.

Ainda dizem que “o que você escreveu ficou confuso para mim, não entendi qual a ligação disso com o restante do texto”. Querem tanta coerência e coesão que só seriam atingidas se matassem a expressão genuína. E fazem isso! São incapazes de produzir uma ideia própria e um conceito profundo. Não conseguem dar um mísero passo se suas mãos não estiverem apoiadas nas mãos dos mortos. E nem é falando de ancestralidasde; mas de fantasmas mesmo. Não conseguem aprender com a ousadia das pessoas que hoje são lembradas por sua coragem de dizer o não-dito. E vez disso, as tomam não como inspiração, mas como escudos, como regimes fixos e como legitimdiade de uma profunda escassez de ousadia. Pessoas que fazem isso são praticamente incapazes de dizer “Bom dia!” sem colocar “(Fulane et al., XXX)”. E, para não se sentirem deslocadas no que chamam de hospício, consideram loucas as pessoas que não caminham nos mesmos trilhos. É até rizível o quanto essa suposta capa de segurança e autonomia esconde o medo profundo que essas pessoas tem de não haver uma definição teórica que sustente cada vírgula; elas tremem colocar questionamentos para as pessoas pensarem, tudo precisa estar totalmente amarrado, ligado, preso e conectado. Precisam estar como estão suas ações: sempre regidas pelo que esperam delas, jamais pela possibildiade de um vir a ser que não está protocolado. Substimam de tal maneira quem escreve e quem lê que acreditam que se os seres acadêmicos não entenderam, por uma lógica narcisista, ninguém entenderá; isso porque não se dão o direito de ficarem confusas.

Talvez sejam pessoas que temem olhar para quem faz tudo aquilo que elas sempre desejaram fazer – caso tenham desejado por si. Talvez sejam pessoas que não suportam ver outros corpos e outros sujeitos fazendo o uso “estranho” de seus grilhões; talvez lhes incomode o fato de usarmos dos açoites e das espadas colonialistas para produzir um grito de liberdade; isso icomoda quem só sabe usar a faca para cortar pesçosos e sonhos, e a que só usa açoites pelo sadismo de ver gritar quem ousa dizer contra a hegemonia…

Para pausar essa escrita e continuá-la em outro momento e em outro lugar, só destaco que nada dessa crítica é exatamente sobre as palavras que escolhemos para escrever. Escrever de um modo mais “simples” ou mais “complexo”, digamos assim, não é a questão. Não é somente sobre forma, mas sobre discurso. O ponto é sobre quem pode escrever de um determinado modo e porque esse poder escrever precisa ser legitimado por uma norma o tempo todo. É sobre como o academicismo envenena sonhos e subjetividades a cada vez que querem dizer que existe um jeito específico e ideial de expressar ideias. Novamente: falta uma dose diária de poesia para essas pessoas dopadas pelo ópio acadêmico. Porém, e desconfio fortemente que, ao fazer isso, trairão a classe de quem [acha que] “sabe escrever de verdade”. Em vez de escrever, o que fazem é assinar o pacto e atualizar o contrato da mediocridade.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem usada para compor a capa deste texto foi obtida aqui.